[38] RAFAEL

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Olhei pela janela pela ducentésima vez naquele dia. Na verdade já havia desistido de ir e voltar e resolvi sentar ali pra poder observá-la de longe. Queria que ela fosse embora, mas Isa era muito cabeça dura, passou o dia inteiro naquele chão sujo e eu sabia que não desistiria até que eu fosse falar com ela.

- Você não tem coração, meu filho? – Minha avó falou, mais uma vez tentando me persuadir a ir buscar Isadora lá fora. – Deixar a menina na calçada daquela maneira o dia inteiro.

- Ela pode ir embora a hora que quiser vó.

- E se alguma coisa acontece a essa menina? Algum indigente? Pessoas ruins estão por toda parte.

- Por que você acha que tô aqui sentado há, - Olhei o relógio na parede atrás dela. – oito horas e trinta e três minutos tomando conta?

- Vocês dois tem problemas mentais, isso sim. – Ela ficou resmungando, enquanto se virava, pensando em seguir pra cozinha. Mas fez o giro completo e me olhou novamente. – No meu tempo, já estaria tudo resolvido. A mocinha não vai embora, você ainda não percebeu?

- Porque ela não quer. – Dei de ombros, olhando mais uma vez pra Isa, encostada no muro, em pé. Já devia ter cansado de ficar sentada.

- Não, porque ela se importa. – Minha avó falou alto e eu me assustei, ela nunca levantava a voz pra mim. – Não é porque ela não quer. Tenho certeza que a mocinha gostaria muito de estar na cama dela, vendo televisão, ou mexendo nessas porcarias de celulares que vocês usam. Mas tem algo que ela quer mais que isso, mais que qualquer conforto e é um chance de se explicar. E de mostrar pra você que ao contrário do que você pensa, ela se importa sim. – Não respondi, com raiva da situação. Por que ela não tinha falado comigo? Teria sido mais fácil. Quer dizer, não, eu ainda estaria puto, arrasado e decepcionado, mas teria ela pra me apoiar. Mas não. Ela tinha que esconder aquilo de mim. Vi minha avó começou a subir as escadas devagar, indo pro seu quarto.

- Vai dormir, vó?

- Vou. E eu espero que você tenha a decência de não deixar a mocinha dormir lá fora. Porque ela vai. E você sabe disso. Boa noite.

- Boa noite. – Falei a contragosto, lutando internamente contra meus demônios. Uns vinte minutos depois, com vontade de me socar, abri a porta de casa e parei no portãozinho de ferro. Ela me olhou daquele jeito, com seus olhos brilhantes e por um segundo eu esqueci que estava com raiva dela.

- Rafa... – Havia pouco espaço entre nós, tanto o muro, quanto o portão eram baixinhos, coisas de casas antigas de vila, onde ainda há um pouco de segurança, então só havia uma divisão entre nós da cintura pra baixo.

- Vai embora, Isadora. – Falei cansado e ignorando o olhar dela, senão, eu mudaria de idéia rápido. Mas o pensamento de que eu poderia mudar de idéia rápido me fazia pensar que talvez eu não estivesse com tanta raiva dela assim, só um pouco magoado. Olhei pro poste atrás dela e me concentrei em estar com raiva sim.

- Não vou. – Ela adquiriu um ar irritado. – Já disse que não saio daqui enquanto você não falar comigo. Pior, prometi a mim mesma que só saio daqui quando você me perdoar. Então, ou você começa a me escutar, ou vai ter que se acostumar com uma garota deitada na sua calçada, atraindo atenção dos passantes que pensarão que sou uma mendiga, porque depois de alguns dias aqui, com certeza parecerei uma. – Quase sorri. Droga, porque essa garota fazia isso comigo? Ela me causava umas reações esquisitas que eu nunca tinha sentido com ninguém.

- Seu pai não vai deixar você passar o resto da vida aqui. – Falei, olhando pro chão, tentando decidir o que fazer.

- O resto da vida? – Ela perguntou triste. – Vai demorar esse tempo todo mesmo? – Isa suspirou e virou de costas pra mim. – Não tem problema, eu fico. – Olhei pro seu cabelo caindo em cachos pelas costas, a roupa meio suja por ter ficado sentada ali fora tanto tempo. Andei de volta até a casa e vi seu semblante triste quando ela virou, os olhos começando a brilhar com algumas lágrimas por me ver entrando novamente. Peguei a chave na mesinha do canto, fechei a porta atrás de mim e saí pelo portãozinho de ferro, parando de frente pra ela. Suas lágrimas começaram a surgir com maior velocidade e em poucos minutos, seu rosto estava todo molhado, o nariz entupido e o cabelo colando onde as lágrimas tinham deixado rastro. Tirei o cabelo do rosto dela e a abracei, como eu queria fazer todos os dias, como eu precisava fazer desde o dia que entrei em casa e vi meu pai segurando a mão da minha mãe. Eu precisava de Isadora ao meu lado como nunca havia precisado de ninguém.

Ele e Ela [Os Dois Lados da História] [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora