Tudo bem ser diferente

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Editado: 13/01/2021 às 13h31


Como sempre, o clima em Creta é agradável, eu senti falta disso. O sol brilha atrás das montanhas, mas o calor não é incômodo graças à brisa que balança a folha das árvores. O vento entrava pela janela do carro e sacudia os cachos do meu cabelo, eu quase sorria para a sensação boa daquele outono - minha estação favorita do ano -, mas não era um bom dia para sorrir.

Eu tentava manter o ânimo, foi só minha primeira entrevista de emprego depois da faculdade. Só faz dois meses que colei grau na Academia Real de Literatura e Idiomas de Mereatoles, província próxima de Creta, onde eu moro com meus pais. Eu devo ter sido a única mulher no campus universitário, não me lembro de ter esbarrado com nenhuma outra em quatro anos. Enfrentei a ordem natural da sociedade sobre casar cedo e ter uma penca de filhos para, no fim das contas, não conseguir emprego na escola mais bem conceituada da minha cidade. Tudo bem, só foi a primeira entrevista.

Passei o dia calada, procurando por novas vagas de emprego na internet. Minha mãe me olhava com pena, sem entender minha decepção. Eu não preciso desse emprego, sou apenas a filha caçula do sexto homem mais rico do país, porém não se trata de dinheiro, eu quero me sentir útil e trabalhar com o que eu amo.

- Vejo que não conseguiu - começou papai na mesa de jantar.

Meu pai é consideravelmente jovem para ter tudo que tem, ainda vai fazer cinquenta anos. Claro que seus maiores méritos são herança de família, Gerard Wittlock é rico de berço, assim como minha mãe também é. Mamãe deveria ter se casado com meu tio por conveniência das famílias, contudo ela era apaixonada pelo meu pai e exigiu que seu noivo fosse ele. Eles têm uma boa história de amor para contar para os netos.

- Não... - concordei.

- Você é muito inexperiente ainda, filha - amenizou minha mãe.

- Não é a experiência, - discordei - eu vi bem nos olhos do recrutador o que o incomodou - reclamei cortando a carne.

Meus pais se entreolharam incomodados. Eles tentaram me blindar o máximo que puderam, eu posso dizer que vivi dentro de uma bolha por uns bons anos da minha vida, todavia eu não tinha como viver trancada na torre mais alta do castelo como uma princesa da Disney. Eu sou negra e isso implicava em muita coisa na vivência social quando se mora em Magnólia.

Eu demorei a me dar conta que era diferente do resto da minha família, só enxerguei as diferenças com mais clareza perto dos dez anos de idade e a cor nem foi o mais evidente para mim, fiquei curiosa no motivo de eu ter o cabelo tão enrolado e minhas irmãs não.

Tudo bem ser diferente, ninguém precisa ser igual, só que não é todo mundo que sabe lidar com diferenças. Eu passei a vida escolar inteira sendo "a feia", "a menina de cabelo ruim", "a menina de boca grande", "carinha de empregada" e por aí vai. Como eu era diferente das minhas irmãs, não tinha motivo para tomar o mesmo rumo que elas tomaram de suas vidas, eu não iria me casar, então fui para Mereatoles estudar.

Na faculdade e na vida não existe bullying, existe racismo. Minha presença sempre foi criticada e indesejada, e foi exatamente o que senti na entrevista de emprego.

- Meu bem, eu preciso conversar sobre algo sério com você - desconversou.

O encarei ainda mastigando sem imaginar o que poderia ser.

- Estive com o conselheiro real, Martin Gorgeou. Lembra dele? - indagou.

- Vagamente - eu disse.

- Estudamos juntos na época da faculdade. - contou - Eu, ele e o falecido rei David. Martin me procurou porque, aparentemente, o rei Túlio está procurando uma noiva e... Pensou em você.

LucillieOnde histórias criam vida. Descubra agora