Deveres

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Editado: 04/3/2021 às 10h49

Depois que Leda e sua equipe terminaram o relatório do mês, eu ainda fiquei na sala de reuniões meio espantada com tudo que ouvi com tanta naturalidade. A saúde em Magnólia é privada, isso eu sempre soube, e quem não pode pagar por ela se beneficia do MagMedical, um programa de financiamento junto às instituições financeiras que paga o atendimento médico do beneficiário e posteriormente cobra o valor correspondente em pequenas parcelas acrescidas de juros. O MagMedical é recente, tem pouco mais de dez anos de idade, foi um dos programas mais marcantes do reinado de Túlio e parecia ser um grande avanço.

Batendo a caneta contra os meus lábios, fiquei me perguntando como pessoas do nível das que encontrei em Downtforth teriam acesso a algum atendimento médico. Certamente, eles nunca teriam como financiar uma consulta, não têm bens para dar em garantia. E se alguém tiver uma doença grave? E se alguém precisar ter um bebê?

Deixei a caneta cair sobre a mesa e levei minhas mãos à raiz do meu cabelo. Pelo que eu sei, minha mãe biológica morreu de parto, talvez ela não tivesse um problema grave, uma cesariana poderia ter salvado sua vida, um pré-natal decente, qualquer coisa... Bufei frustrada e voltei para o gabinete de Túlio. Olhei para aquela montanha de projetos de lei com ódio, nada daquilo tinha sentido, Magnólia parecia um guarda roupa bagunçado em que aquelas leis seriam roupas novas que eu teria que dobrar e jogar por cima da bagunça. Não dava. Para resolver o problema seria preciso tirar tudo do guarda roupa e começar do zero.

Com sorte, a única coisa que podia melhorar meu humor aconteceu. Túlio me ligou e não era a sua voz do outro lado da linha, era o som doce e agudo da vozinha de criança do meu enteado.

- Lucillie, eu sinto sua falta - ele disse num muxoxo.

- Eu também sinto, meu lindo - choraminguei apoiando meu rosto na palma da minha mão.

- Eu sinto muita, muita, muita saudade! - ele enfatizou fazendo meu coração doer.

- É horrível dormir sem te dar um beijinho de boa noite - contei.

- Eu já pedi o papai para voltar, ele disse que voltamos amanhã.

- Eu estou ansiosa, meu amor.

Quando Andrew voltou, eu o abracei tão forte que comecei a me questionar se o tamanho da saudade que eu senti dele era normal, respirei seu cheirinho de bebê aspirando vida de volta para os meus pulmões. Na hora de dormir, não resisti e acabei dormindo na cama dele abraçada ao meu príncipe favorito.

Já Túlio... Ele evitava me olhar, evitava falar comigo quando o assunto não era trabalho, me dava respostas curtas e só nos encontrávamos no jantar. Isso durou alguns dias.Eu procurei respeitar o espaço dele, porém chegou uma hora que não dava mais para conviver daquela maneira, não dava mais para olhá-lo e não tocá-lo.

Quando estava em casa, Túlio revezava o seu tempo entre o escritório, ficar sozinho com Andrew e a academia. Ao som de Pearl Jam, eu o assistia fazer barras numa estrutura alta. Não era sempre que ele vinha aqui, antes só se exercitava quando Theo estava junto, eles faziam um tipo de crossfit juntos. Eu até pensei em lutar contra o sedentarismo com tanto aparato dentro de casa, todavia preferi continuar deitada.

Túlio parecia empenhado em seu exercício mesmo vendo que eu estava de braços cruzados diante dele, ele não parecia querer falar e eu também poderia ficar calada por alguns minutos só para ver os músculos de seus braços se contraindo e as gotas de suor percorrendo seu corpo. Ah, eu podia fazer isso o dia inteiro!

- A gente precisa conversar.

- Quer conversar agora? - perguntou ele soltando a barra de ferro - Estou ocupado.

LucillieOnde histórias criam vida. Descubra agora