PARTE 1 / CAPÍTULO 1: A CIDADE DE CRISTAL

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No limiar do mundo, sob um céu esbranquiçado, uma cadeia de montanhas desenhava o relevo irregular. Suas formações afiadas cortavam as nuvens e partiam os céus, elevando-se como torres, ameaçadoras e indomáveis. O gelo se estendia por todos os lados, até além de onde os olhos alcançavam.

Ali onde a vegetação não crescia e os animais não sobreviviam, tomados de surpresa por uma violenta tempestade, uma caravana fazia seu caminho. O cenário inóspito os desafiava a prosseguir viagem, mas os viajantes não se deixavam intimidar. Os fragmentos de gelo lhes cortavam a pele como açoites de chicote, invadiam-lhes as narinas e queimavam seus pulmões.

As estranhas criaturas que montavam iam seguindo a passos lentos. Mantinha-se constante um rufar cadenciado, como que de mil tambores em sintonia. Era o som das bestas em marcha, uma massa selvagem e organizada de imensas criaturas peludas que avançava sobre o solo intocado, transformando-o em um conjunto embaralhado de pegadas grandes o suficiente para abrigar um homem deitado com os braços abertos. Bufavam e fraquejavam, a fadiga era crescente. O ruidoso barulho dos ventos só era interrompido eventualmente pelo lamentar de uma montaria particularmente exausta.

O sol andava paralelo ao chão, derramando sobre o tapete de neve um desconcertante tom crepuscular. A atmosfera era densa, seca. O horizonte não existia, céu e terra se fundiam em uma mancha branca. Quase todos os viajantes iam protegidos por grossos casacos, máscaras e capuzes.

Apenas um diferia dos demais. Usando a máscara fechada comum a todos e um capuz fino, havia a líder.

Leina Vindres, atheres do 1º Corpo Militar do Atherum, distinguia-se pela falta do casaco de pele que aquecia os demais integrantes da comitiva. O uniforme justo que vestia era complementado tão somente por uma capa branca de fina costura, decorada com o símbolo de seu exército, além das luvas e botas padronizadas. Liderava o caminho entre os montes sinuosos, expondo seu corpo ao frio intenso da tempestade.

A caravana seguiu até um monte de neve alto, subiu com dificuldade seu aclive e a voz de Leina se elevou ante o vento. Ela ordenou a parada com o levantar de um braço, logo antes da queda abrupta do solo que anunciava uma vastidão de planície gélida. Tinha-se um escarpe, e logo mais o seu destino. Uma magnífica cidade se erguia majestosa bem no coração do gelo, como um oásis naquele inferno cinza. Era Venécia, mãe de todas as cidades, sede do governo mundial.

Do alto do desfiladeiro, podia-se ver toda a extensão de Venécia. A atheres se permitiu um momento de contemplação da paisagem. Largas avenidas cortavam torres e edifícios altíssimos, encimados e conectados por um sistema intricado de trilhos aéreos por onde flutuava o seu luxuoso transporte público, tudo plantado sobre uma firme fundação sólida.

A cidade era climatizada e protegida das intempéries do ambiente externo por uma descomunal cúpula de vidro que a cobria por completo, seguindo a silhueta dos edifícios, convenientemente mais alta onde os arranha-céus necessitavam de mais espaço. O resultado era uma sobreposição cristalina, tornando seus prédios como que esculpidos à mão ainda mais belos.

Capital do mundo, normalmente apinhada de gente, encontrava-se agora vazia.

Veículos haviam sido abandonados nas ruas e não se via um sinal de viva alma, dentro ou fora dos prédios. Leina abandonara sua montaria e passara a olhar fixamente para a cidade desabitada. Foi surpreendida pela presença de um homem que se aproximava. Ele esfregava freneticamente as mãos, num infrutífero esforço de se aquecer. Retirou a máscara que lhe escondia a face e passou expirar nas mãos geladas.

– Salve, atheres – ele a cumprimentou com um aceno de cabeça.

– Comandante Lavoir – ela retribuiu o aceno. – Alguma notícia do acampamento?

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