O 6º FRAGMENTO: O PREÇO DE UM MUNDO PERFEITO

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Ao primeiro anúncio das dezenove horas era dado o sinal que marcava o fim do dia na escola militar de Venécia. No lado de fora, envolvendo as centenas de crianças que deixavam o prédio, havia uma escuridão artificial. A época do ano era a única responsável pela iluminação diurna da cidade, variando a quantidade de luz de acordo com a posição do sol ao passar dos meses. A noite, por sua vez, era súbita e instantânea a uma dada hora do dia. O virtualmente eterno pôr-do-sol era substituído por uma vaga luminescência alaranjada e a iluminação interna entrava em vigor. Essa hora chegara, e todas as minúsculas células que compunham a gigantesca estrutura de vidro tornaram-se vagamente foscas e escureceram o ambiente de Venécia.

Caminhando ao lado de uma rua realçada por uma luz de fonte indefinida, Leina fazia seu caminho de volta pra casa. Andava a passos lentos e pesados, havia tido um dia péssimo. A calçada na qual caminhava estava completamente deserta, apenas sua pequena figura era visível por ao menos quatro quarteirões. Passava por debaixo dos postes de luz e brincava de adivinhar a posição da própria sombra nos intervalos de escuridão, seguindo o ponto com os olhos até passar novamente por um poste e confirmar sua estimativa. O jogo logo a aborreceu profundamente. Olhou para o céu, procurando no meio da escuridão alaranjada o halo brilhante do sol poente. A sua claridade não era totalmente vencida pela cúpula, podendo ser visto mesmo na noite de Venécia. Sempre que se sentia sozinha, procurava o brilho fosco do sol no horizonte.

Leina, que vinha do trópico quente, conhecia o sol verdadeiro. Lá ele viajava por todo o céu e iluminava de verdade, iluminava com força. Conhecia também a lua, desconhecida por muitas crianças que haviam nascido na cidade. Leina nunca parara para contemplar a lua, mas agora tinha saudades dela. Tinha saudades de seu brilho puro e sincero, e também das estrelas, dos insetos que cantavam à noite. Tinha saudades da noite de verdade. Venécia funcionava de uma forma que nem o dia e nem a noite eram de verdade, mas apenas uma amostra da coisa verdadeira. O "quase-dia" e a "quase-noite" não satisfaziam Leina e a garotinha estava tendo sérios problemas para se adaptar àquilo.

Andou em silêncio pela rua e virou num cruzamento, logo chegando a um luxuoso prédio de vidro. Uma grande porta trancada a separava do saguão de entrada, então Leina retirou de sua bolsa uma pequena identificação prateada e a colou junto a um leitor no exato ponto onde deveria haver uma maçaneta. Um ligeiro scanner avaliou o cartão prateado e, com um "clique", a porta se abriu sozinha. O saguão do prédio era espaçoso e decorado com um impecavelmente bem cuidado carpete vermelho, junto de móveis e ornamentos muito limpos. Um guarda sorridente a cumprimentou com uma reverência quando a viu entrar. A garotinha o cumprimentou de volta com um sorriso forçado e uma reverência curtíssima, quase não parando rumo ao elevador.

Entrou rápido no compartimento cilíndrico e apertou o sexagésimo quinto andar na tela que se abriu com o fechar das portas. O número sessenta e cinco se realçou com o toque de Leina e se dividiu em cinco outros botões divididos de "A" a "E". Leina tocou mais uma vez na tela, desta vez na letra "D" em que se lia "NOASH, Merrik" num subtítulo.

Por favor, identifique–se. – instruiu uma voz eletrônica e feminina de origem desconhecida.

Leina empunhou seu cartão prateado já previamente sacado e o segurou diante de seu olho direito. Um segundo scanner varreu a sua face de cima a baixo e, com um bipe curto, a voz eletrônica confirmou sua identidade e iniciou a viagem. O percurso aconteceu em poucos segundos e, apesar da velocidade, não era incômodo, sequer desconfortável. Seguiu-se uma prolongada desaceleração e, chegando ao seu destino, o elevador girou lentamente em torno de seu eixo e se abriu numa sala ampla.

– Boa noite, pequena.

A voz era áspera, mas possuía um tom carinhoso. Merrik estava sentado em sua sala, lendo algo em notas espalhadas e anotando dados num papel avulso. Usava uma roupa elegante mesmo no conforto do próprio apartamento. Seu semblante há muito endurecera numa expressão grave, e agora quase nunca era visto sem ela.

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora