PARTE 3 / CAPÍTULO 7: AQUILO QUE NÃO VEMOS

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Em uma de suas viagens com Petru, Ion lembrava de ter passado por um velho pedinte na estrada. Era um homem de aparência comum, desdentado e com a pele queimada pelas longas horas que passava sentado ao sol e, caso não se concentrasse, mal era capaz de se lembrar dos contornos de seu rosto. Foram as palavras dele que o marcaram mais profundamente, exprimidas por uma boca parcialmente cheia do pão que dividiam em uma estalagem esquecida do oriente:

– Você acredita em um mundo além do que somos capazes de ver? – ele lhe perguntou, fitando-o com seus olhos embaçados pela catarata.

– Fala de dragões? – perguntou-lhe, com um tom apenas levemente escarnecedor. – Espíritos? Ninfas etéreas e elfos lépidos?

O mendigo riu com suas gengivas escuras.

– Ah, sim. As pessoas cultas são sempre tão apressadas em renunciar aos mistérios que julgam infantis, mas também são incapazes de aceitar que esse pedaço de rocha seja tudo o que existe no mundo. Nunca se perguntou o que há além das montanhas? Além do mar? Além do céu? – ele lhes agradeceu pelo pão e jogou duas moedas de cobre sobre a mesa. – Qualquer coisa pode ser real. Se não encontramos, talvez não tenhamos procurado longe o suficiente.

Enquanto observava a criatura feita de sombras se elevar do chão acima de Carmine, tudo o que Ion desejava naquele momento era achar esse velho e lhe dizer que ele estava certo.

Por um segundo, a coisa era pequena e não parecia muito diferente de um pequeno borrão em sua vista, mas ela cresceu em segundos, esbravejando com uma voz esquálida e glacial. Logo, ela era tão grande que os mercenários foram obrigados a recuar, com o mais puro horror estampado na face, balançando as armas que tinham à frente, como se tentassem expulsar um cão sarnento.

– Raab! – gritou Nicoleta, com as mãos à boca. – É ele! Digam-me que também o veem, por favor!

– Acho... acho que todos nós vemos, irmã! – gritou Orson em réplica, firmando o punho em torno de sua machadinha.

A coisa urrou ameaçadoramente, espalhando seus membros sem forma pelo ar. Um de seus tentáculos atingiu um homem no rosto, ele gritou em desespero e levou a mão ao local, de onde uma pequena nuvem de vapor passou a escapar por entre seus dedos.

– Afastem-se! Afastem-se da germinadora!!

Ralf era quem estava mais próximo, jogado ao solo por uma força desconhecida, claramente abalado pela confusão e o terror que se elevava ante a ele. O mercenário alcançou a sua lâmina e se levantou do chão, sem tirar os olhos da criatura nebulosa que se contorcia freneticamente.

– O q... O que é isso!? Outro de seus truques!? – berrou, assumindo uma posição de batalha. – Essa bruxaria não vai funcionar contra mim! Eu vi a sua mentira, eu vi a sua morte! Você não vai escapar novamente!!

Ele correu em direção ao monstro, arma em mãos, e mirou na massa negra que poderia se passar pelo corpo da criatura. O aço penetrou a camada que a revestia, mas de lá não saiu. Ralf puxou a arma pela sua empunhadura, e congelou em choque ao ver que o machado havia derretido em fragmentos gelatinosos de cor marrom. O monstro preto se voltou a ele, fazendo brotar mil dentes brilhantes da fenda que acabara de se abrir em seu lado, e gritou. Ion sabia que era um grito pelo timbre e pelo sentimento que vinha à tona com o som, mas se era de dor ou raiva, não era capaz de dizer.

Do buraco, surgiu um braço longo e ossudo de três ou mais cotovelos que se dobravam de maneiras absurdas e estranhas à qualquer criatura de Deus, com cinco dedos bulbosos na ponta. O membro brotou e se firmou ao chão, ao mesmo tempo em que uma cabeça deformada e desproporcionalmente pequena libertou-se da massa negra e disforme que ainda se retorcia sobre o corpo sangrento de Carmine. A criatura parecia revestida em um líquido de aparência viscosa, que se derramava de sua pele em punhados de lodo escuro e fétido.

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora