PARTE 1 / CAPÍTULO 5: NEVE MACULADA

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Leina ficara sozinha. Inicialmente tentara lutar contra os debilitadores, mas eles a puxavam com uma gravidade estranha de volta à base da estrutura. Mesmo toda a potência da shen-bulgard não era o suficiente para superá-la, então desistira.

Agora ela jazia caída, espalhada pela superfície metálica, aguardando a conclusão de seu destino fatal. O mau pressentimento que sentira o dia todo agora estava mais forte do que nunca, um calafrio subia-lhe a espinha e o seu coração batia descompassado. A boca estava seca e a visão, turva. Não lembrava a última vez em que sentira o medo real, concreto. O medo de que algo muito ruim está prestes a acontecer e não se pode fazer nada em relação a isso.

Cerrou os dentes e fechou os olhos, todos os ossos de seu corpo pareciam tremer. Não saberia dizer se era devido ao contínuo vibrar da riesh-munn ou o temor do desconhecido. Todo o plano do qual Reiwan lhe forçara a participar se resumia àquela máquina, tinha medo dela. Tinha medo de nunca mais poder ver seus entes queridos, seus amigos, Merrik. Tinha medo, também, de não conhecer nem a si mesma. Havia hesitado, quase cedera às palavras de Reiwan. Não se imaginava tão fraca de valores e vontades. Se ele a tivesse abordado alguns anos atrás, sua resposta teria sido a mesma?

Novas lágrimas desceram pelo rosto de Leina, lembrou-se do dia em que o conhecera. Era um garoto gentil, quase não falava. Se não tivesse se aproximado daquela figura solitária entre os corredores do colégio militar não estaria passando por isso hoje. Por que Reiwan lhe era tão especial? Por que se destacara de todos os outros garotos shuras que vinham falar com ela?

"Toma, é para você..."

Uma bonequinha de pano, vestia um simpático vestidinho vermelho. O rosto de uma pequena Leina se fez cor de cereja.

"A vida é mais do que só obedecer ao Atherum. Não estou aqui por opção, um dia ainda saio. Quero conhecer o mundo."

Seus olhos nessa hora brilharam como safiras, fora a primeira vez que o vira sorrir.

"Não posso ficar, fui convocada. Preciso me apresentar a Ferdinov, então eu volto e nós partimos juntos."

"Promete? Estarei esperando..."

"Prometo."

E se beijaram, o selo do compromisso, a prova de que um dia ela voltaria. O rosto de Leina corou de vergonha ao se recordar desse momento, voltou a chorar em prantos dentro do traje.

Afirmara com tanta segurança, mas não tinha certeza se a quebra do compromisso fora mesmo pelo bem de Reiwan. Havia sido a justificativa que encontrara na época e lembrou de ter repetido isso para si mesma tantas vezes que acabou se consolidando em verdade absoluta. No entanto, poderia ser apenas uma forma involuntária de evitar o peso da própria consciência. Será que o cargo tinha realmente deturpado sua personalidade?

Passara mais de duas décadas sem ter notícias de Reiwan antes de descobrir que ele havia sido nomeado atherim, e mesmo depois não chegou a trocar mais do que alguns olhares constrangedores em reuniões importantes do Atherum. Nesse tempo, a atheres nutrira uma imagem completamente diferente do sociopata de humor mordaz que ele havia se tornado. Eles haviam se distanciado por tempo demais, haviam se tornado pessoas muito diferentes.

"Ele me esperou até os vinte e um anos. Até o último dia."

A figura do atherim ferido voltou à sua mente e Leina não pôde conter as lágrimas. Ela ainda o associava ao Reiwan de outrora, seu companheiro. Por que as coisas haviam tomado um rumo tão complicado? Em que errara?

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