PARTE 3 / CAPÍTULO 15: ENTRE EXISTÊNCIAS

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"Onde eu estou!?"

Após a explosão, Leina acordara em meio ao nada, em um vazio negro e infinito. Imaginou por um momento ter perdido a visão, mas ao pôr as mãos em frente à face, conseguia ver a luminescência dos sulcos arteriais da shen-bulgard, claros e pulsantes. Tentou se mover de alguma forma, mas era algo muito desorientador quando não se tinha ideia de cima e baixo. Vagou dessa forma pela escuridão absoluta pelo que pareceu horas, mas, estranhamente, seu corpo não demandou água ou comida, e o traje, que deveria ter lhe sugado toda a vitalidade do corpo após um período de quatro horas, não se desligou. Era bastante improvável que o ar do exterior fosse respirável, então decidiu se manter firme e esperar algum tipo de sinal ou ajuda.

Horas se tornaram dias, dias, semanas. O tempo passava de forma muito estranha naquele lugar, logo Leina aprendera a desligar a mente e deixá-lo fluir através dela, e assim tudo parecia acontecer simultaneamente, como se, de repente, percebesse ser possível avançar e retroceder um vídeo ao mesmo tempo. Foi numa dessas sessões de descolamento da realidade que ouviu o primeiro ruído desde sempre.

– OLÁ, LEINA.

Era uma voz clara e compassada, de gênero indistinto, mas com uma dicção tão perfeita quanto poderia ser. Ela tentou dar uma resposta, mas teve dificuldades em enunciar a própria voz ou exprimir qualquer som.

– VOCÊ NÃO CONSEGUIRÁ FALAR COMIGO EM MEU DOMÍNIO, MAS EU POSSO VÊ-LA. TENTE ALGUMA OUTRA FORMA DE SE FAZER ENTENDER.

Lembrou de ter aprendido a língua de sinais quando ainda era uma adolescente. Era um dos cursos de menos lustro na escola militar, mas agora se sentia muito feliz de ter tirado um tempo para aperfeiçoar as letras.

"Quem é você?" – ela perguntou, com as mãos.

– NÃO TENHO NOME, NUNCA PRECISEI DE UM – ele respondeu, quase instantaneamente. – PODE ME CHAMAR DE 'VOCÊ'.

"Você", em kalariano, sua língua natal, se traduzia como "Amel" em manashvan. Amel parecia um nome tão bom quanto qualquer outro, pelo menos iria tornar tudo um pouco menos confuso.

"Onde estou, Amel?"

– ONDE EU ESTOU.

"E onde você está?"

– É UMA PERGUNTA DIFÍCIL. 'ONDE' PRESSUPÕE UM LUGAR, E ESTE É UM NÃO-LUGAR. VOCÊ ESTÁ AQUI. EM CANTO ALGUM, MAS TAMBÉM EM TODO CANTO.

"Você me chamou pelo nome, você me conhece?"

– EU CONHEÇO TODAS AS VERSÕES DE VOCÊ. TODOS OS SEUS NOMES E TODAS AS SUAS VIDAS. ISSO INCLUI LEINA.

"Quê?"

– NÃO POSSO SER MAIS ESPECÍFICO SEM CONFUNDI-LA AINDA MAIS.

"Você mora aqui sozinho?"

– EU TINHA UM IRMÃO, MAS ELE SE FOI. AGORA VIVO SÓ.

"Eu sinto muito."

– POR QUÊ? ELE NÃO SIGNIFICAVA NADA PARA VOCÊ.

"Eu me chateio em saber disso."

Com tentativa e erro, Leina foi capaz de entender as circunstâncias de Amel e como se deu a fuga de seu irmão. Eles sempre haviam vivido em conjunto, interpolando os próprios pensamentos, em sintonia. De alguma forma, no entanto, a máquina de Reiwan havia iniciado uma série de acontecimentos que perturbara gravemente a ordem daquele não-lugar, levando não apenas ao desaparecimento de sua outra metade, mas também a um grave desequilíbrio na relação entre Amel e seu domínio.

– VOCÊ PODERIA ME AJUDAR A PROCURÁ-LO. ELE É NECESSÁRIO AQUI.

"Como?"

– EU POSSO ABRIR UMA PASSAGEM PARA A TELA ONDE ELE ESTÁ, VOCÊ SERÁ CAPAZ DE LOCALIZÁ-LO.

"Essa passagem me levará para casa?"

– NÃO. MAS LÁ VOCÊ PODERÁ PROCURAR ALGUM MEIO DE VOLTAR.

"Você não pode simplesmente me mandar para o lugar de onde eu vim?"

– EU NÃO SEREI CAPAZ DE LOCALIZAR A SUA TELA EXATA. TALVEZ UMA PARECIDA, MAS NÃO EXATAMENTE A MESMA. MEU IRMÃO EMITE UM SINAL, CONSIGO ESCUTÁ-LO, MAS ELE NÃO ME OUVE. VÁ ATÉ ELE E AVISE QUE O PROCURO, ENTÃO O SEU CAMINHO SE TORNARÁ CLARO.

Após ele dizer isso, um vórtice brilhante como a luz do sol pareceu surgir à sua frente. Não sabia dizer se era devido ao fato de não ter visto qualquer outra fonte de luz por tanto tempo, mas aquela claridade machucou as retinas de Leina, cegando-a temporariamente.

– VOCÊ PRECISA IR, OU A PASSAGEM SE FECHARÁ.

Leina sentiu uma leve pressão sendo aplicada em seu corpo, forte o suficiente para levá-la de encontro ao corpo de luz desconhecido. Ao tocá-lo, sentiu mais uma vez a sensação de milhares de pequenos ganchos lhe puxarem pela pele, rápida e dolorosamente.

Ela atravessou a fenda, e voltou a existir.

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora