PARTE 2 / CAPÍTULO 24: ALÉM DA INIMIZADE

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Era a quarta vez que Carmine marchava até o pequeno claustro no segundo andar daquele templo de pedra, esperando finalmente obter alguma pista de como voltar para casa. Depois de meses à procura do cilindro, estava prestes a aceitar que o receptáculo se perdera para sempre, levado pelas águas tormentosas do grande rio que banhava aquela região, até ela aparecer.

Os monges a chamavam Nicoleta. Ela era uma das discretas criadas que habitavam os cantos escuros do prédio enquanto os homens se prostravam em orações, lavando, limpando e servindo refeições. Era uma garota magra e tímida, de feições singelas e cabelos loiros, com mãos calosas e queimadas por anos de fricção contra tecidos e sabão.

Era tudo o que sabia sobre ela.

A garota chamada Nicoleta e o companheiro de Carmine, Gon Gigante, haviam sido movidos para uma enfermaria improvisada em um quarto vago, separados apenas por uma tela de tecido sustentada por um suporte rústico de madeira atada. O aparato era apenas para a privacidade dos dois, visto que, caso estivessem de fato infectados, aquele pano faria tanta diferença quanto os opiáceos que insistiam em dar a Hans.

Carmine lembrou, com desgosto, dos gritos do mercenário enquanto o enfermeiro-mor tentava trocar suas roupas. Demetério demorara a notar os nacos sangrentos de carne grudados ao tecido. A pele do homem estava descolando de seus músculos, não restavam dúvidas de que se tratava de peste stipfânica e Carmine sabia que isso era apenas o começo.

"Como isso é possível? Buckinglia? Aqui?"

A transmissão da doença não deveria ser possível fora de seu mundo, e já ficara claro que não estava em seu mundo. Pequenos vilarejos como aquele, de economia rural e construção rudimentar, não existiam mais em Manash, principalmente em uma zona quente. Mas também duvidava estar em uma colônia. Artlade ainda estava em processo de terraformação, respirar em sua superfície sem ajuda de aparelhos ainda não era tão fácil, e todas as cidades em demais planetas e luas necessitavam de uma cúpula para abrigar vida. Estaria realmente em uma outra realidade? As últimas palavras de seu antigo colega lhe vieram à mente:

"Ele me mandou entregar os projetos para um físico ou um engenheiro."

Mas como seria capaz de achar alguém assim em um lugar como aquele? Viagens interuniversais estavam além de sua própria compreensão, e o conhecimento daquelas pessoas sobre a tecnologia de sua terra natal era inexistente. O experimento pode não ter funcionado exatamente como se esperava, ou algo estava faltando, alguma informação que Carmine ainda não desvendara.

Aquela garota, Nicoleta, ela era sua saída. As palavras que a garota proferira enquanto era agredida haviam sido débeis, mas claras o suficiente. Ela falara uma frase em manashvan, uma frase simples, mas que não deveria ser possível sem que ela tivesse ouvido o idioma antes. Ela era a única conexão que Carmine tinha com o seu mundo.

"Lembre-se da neve... Não tem como ser coincidência."

Três vezes já tentara conversar com ela e três vezes obtivera o silêncio como resposta, mas dessa vez seria diferente. Carmine virou-se para seu acompanhante um pouco antes de alcançarem o quarto onde a criada estava sendo mantida:

– Não toque em sua pele. Caso ela comece a tossir, tape o nariz, boca e saia imediatamente.

Mihai assentiu nervosamente.

– Demetério já me avisou das precauções, não te preocupes. Mas não sei no que tu esperas que eu possa ajudar, a mente de Nicoleta divaga por esses dias, receio que ela possa não estar mais sã...

– Se ela não abrir a boca, estou perdida. Por favor, irmão Mihai, se há uma pessoa aqui que pode salvar a nós duas, é você.

O monge limpou a garganta e empertigou a coluna na posição mais confiante que conseguiu projetar, tomando a frente antes de adentrar o cômodo. Carmine o tinha sob uma nova luz ultimamente, pois notara o quanto sua presença ali havia afetado o seu comportamento. Inicialmente, ele apenas lhe ensinara a língua, mas não tardou a se tornar uma das pessoas com quem se abria mais facilmente. Tendo antes sido esquivo e acanhado, agora não era raro para os dois pararem um ao outro nos corredores para conversarem sobre assuntos diversos. Era fácil depender de Mihai, e ele também não parecia mais se incomodar com a sua companhia, então acabaram se aproximando. 

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora