O 7º FRAGMENTO: UM DIA INCOMUM

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Para muitos alunos, era apenas mais um dia normal na escola militar de Venécia. As crianças amontoavam-se na entrada do prédio momentos antes do sinal para o início das aulas. Havia um rumor de desordem no ar, garotos falavam alto e se preparavam para o engarrafamento matinal que sempre ocorria rumo às salas de aula. Podia-se ver a chegada dos professores que desciam de seus veículos na rua vizinha e os seguranças se preparando para ordenar a entrada das crianças. Era um dia comum e rotineiro para todos eles.

Mas não para Leina.

Esse dia era diferente por vários motivos. Primeiro, não havia tido nenhum problema até ali com abordagens incômodas de colegas curiosos. Ninguém veio falar com ela quando chegou à escola. Pelo contrário, pareciam abrir caminho quando ela passava, como se carregasse um tipo de vírus contagioso.

Depois da cena do dia anterior, já esperava que fosse assim.

À princípio, ela se sentiu sozinha e triste, mas pelo menos não precisava mais passar pela terrível experiência de ter de agradar gente que não gostava. Pensou por esse lado e não se importou mais. Nem mesmo quando a colega loira, com quem no outro dia havia conversado tão animadamente, dirigiu-lhe uma careta de horror.

E ainda, a partir da noite anterior, Leina passara a enxergar as pessoas e o mundo de forma diferente. Segundo as palavras de Merrik, ela e aqueles garotos faziam parte de um mesmo grupo. Eram todos shuras como ela, mas não conseguia vê-los como semelhantes. Não podia admitir ser igual àquelas crianças sádicas e mimadas que tanto detestava e, ao se ver também rejeitada por eles, percebeu que não existia ninguém com quem pudesse se socializar ou grupo em que pudesse se encaixar. Leina sentia-se uma estranha no mundo.

Por fim, havia o stipfan. Prometera a si mesma que descobriria naquele garoto a imperfeição que separava shuras e stipfans, ele despertara sua curiosidade por algum motivo que não conhecia. De onde ele veio? Por que ele lhe parecia tão esquisito e ao mesmo tempo tão familiar? Queria vê-lo novamente e descobrir todas essas coisas. Em posse de tais informações, desvendaria enfim a origem do ódio pelos stipfans e aprenderia mais sobre as pessoas, talvez sobre si mesma.

Inconscientemente, Leina também procurava no garotinho uma saída daquele mundo estranho. Se as pessoas odiavam os dois, era muito provável que os dividissem algum traço em comum. Ele pertencia a um grupo que ela ainda não conhecia e poderia muito bem ser um amigo em potencial.

Leina divagava sobre como chegaria até o garoto e o que faria se conseguisse.

"Iria parecer estranho se já chegasse fazendo perguntas."

Resolveu cuidar primeiramente da parte complicada, pensaria melhor nos detalhes quando chegasse a hora certa. Acompanhou então a massa de crianças até a sua classe e lá assistiu as primeiras aulas normalmente. Foi apenas no final da segunda aula, cerca de duas horas após o sinal, que Leina simulou uma súbita e urgente vontade ir ao banheiro.

– Aguarde alguns instantes, Srta. Vindres. Creio que se arrependerá por perder essa matéria quando for fazer a prova. – respondeu a professora Karin, de história contemporânea.

– Acho que vou ter que arriscar, professora – retrucou, fazendo uma careta.

– Não dá pra segurar?

– Lamento.

– Então vá rápido. Três minutos ou perderá o dia.

A professora se referia à chamada que era executada automaticamente em todo início e fim de aula. Com tudo que se passava em sua cabeça, a chamada era o que menos preocupava Leina. Retirou-se rapidamente da sala e suspirou aliviada ao se deparar com o corredor vazio.

Precisava agora apenas descobrir em que sala o stipfan fora detido. Começou a andar pelos vastos corredores da escola militar à procura de alguém que pudesse lhe passar algumas informações. Passou por diversas classes em aula, desde diferentes turmas do primeiro ano até alunos já avançados em seus quartos e quintos anos. Caminhou até se deparar com um segurança de plantão à frente de uma saída de emergência.

O homem se erguia numa postura muito ereta e usava um uniforme azul–escuro cuidadosamente limpo. Parecia ligeiramente entediado, já que olhava sem vontade para um relógio de pulso logo antes de notar a aproximação de Leina.

– Por que não está na aula, mocinha? – perguntou ele em tom cordial.

– Preciso ver uma pessoa, senhor guarda – falou, com seu melhor sorriso de garotinha inocente, enquanto fazia a cabeça funcionar a mil. O menor deslize e seria mandada de volta para a aula com mais uma advertência por mau comportamento. – Fui enviada pela professora Eva Karin, preciso falar com alguém na detenção. Pode me indicar o caminho?

O guarda cerrou os olhos, visivelmente desconfiado. Leina sentiu o rosto corar.

– Que estranho. Que eu saiba, só temos um garoto na detenção agora.

– Rihem Bells? Quarto ano? – tentou ela com primeiro nome conhecido que lhe veio à cabeça.

– Não, é um stipfan. Magrinho, meio rebelde. Semana sim, semana não ele aparece na detenção por cabular aula...

O segurança levou os dedos aos lábios, como que tentando arrancar deles algo que já estava na ponta da língua.

– Gaishir! Sim, Reiwan Gaishir é o nome dele. E é do primeiro ano, tenho certeza que não é quem você procura.

Leina se incomodou diante da certeza do guarda. Ele estava assim tão seguro de que ninguém se daria ao trabalho de procurar o pequeno stipfan? Ao sentir na pele a miséria do isolamento, Leina soube mais do que nunca que deveria conversar com o garotinho a qualquer custo, podia ter pouca experiência de vida, mas sabia que ninguém merecia passar por aquilo. No seu caso, plantara a raiva e condescendência, e imaginava ser isso que afastava as outras pessoas, mas o que o stipfan teria feito para estar na mesma situação, fora o próprio fato de ser um stipfan? Ela guardou esses pensamentos para mais tarde e agradeceu ao guarda com uma reverência.

Leina voltou para sua classe considerando a missão um grande sucesso. Não havia descoberto onde o stipfan estava detido, mas descobrira algo muito melhor e com certeza muito mais útil.

"Reiwan Gaishir, primeiro ano." – repetiu em sua cabeça.

Em posse de seu nome e ano, poderia facilmente chegar a sua tabela de horários e a partir daí deduzir a hora em que ele sairia da detenção. Não sabia com quantos dias o garoto fora castigado, mas sabia que a escola não permitia nenhum aluno dentro de suas dependências a partir de uma hora após o toque do fim de período. Ele teria de sair no mesmo horário que todos os outros alunos mais velhos. E seria nesse momento que Leina finalmente o conheceria. Ela se iluminou por dentro. Não poderia estar mais ansiosa pelo fim do dia.

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora