PARTE 3 / CAPÍTULO 10.2: O MILAGRE DE ALTORRIO

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Mihai viu, ao longe, Carmine estender um par de asas negras e dar um rasante sobre o numeroso exército de Irgalmas. Algumas poucas flechas voaram em sua direção, mas ela agira no momento certo, o inimigo não tivera tempo de se organizar. Ao ver o demônio do Rio Negro, em toda a sua glória, sobrevoando Altorrio tal qual um emissário infernal, as linhas de suas tropas cederam à desordem. O abade sorriu enquanto observava homens com mais de dez anos de experiência pularem as ameias da muralha externa para tentar escapar da fúria de Anghila. O plano funcionara.

"Eu deveria estar lá. Eu deveria estar com ela" – pensou, tensionando os punhos. – "Por que eu não estou no campo de batalha?"

– Está preocupado?

Virou-se, surpreso, e se deparou com Katia Irgalmas. Ela havia trocado a indumentária de couro por uma armadura acolchoada e colocado sobre a cabeça um meio elmo brilhante. Montava uma enorme e magnífica égua branca, o que fez o abade se perguntar como não a havia escutado se aproximar.

– Este animal, não é...?

– Aurora, a melhor amiga de Isaac – ela respondeu com um sorriso. – Ele ficou tão chateado de não poder levá-la, mas não há razão para ela não ser útil a nós. Vamos?

– Vamos? Tu queres mesmo te envolver em uma batalha desta escala?

– Não quero ficar aqui parada enquanto outras pessoas arriscam a vida por mim, achei que você pensasse o mesmo. Devo ir sozinha?

Levou os olhos mais uma vez ao castelo e viu sua protegida saltar sobre as paredes de uma torre e disparar mais uma vez a poderosa arma que carregava em seu braço direito. A luz era brilhante o suficiente para transformar a noite em dia, mesmo que por um segundo. Imaginou quantos ela teria levado com aquele tiro.

"Tão mortífera, e ao mesmo tempo tão gentil. Eu cumprirei a minha promessa, serei a tua sombra."

– Não. Eu também irei.

– Mas você não prefere antes pegar uma armadura, ou...

Mihai não a escutou. Subiu na garupa de Aurora, segurou Katia pela cintura e esporeou o flanco da montaria com os calcanhares.


***


O sol mais uma vez havia brilhado no meio da noite, mas Ion já tinha visto aquilo acontecer outras três vezes e agora estava preparado. Tapou os olhos com as mãos e esperou o instante de calor passar antes de tirar os dedos da face e se deparar com uma cratera esfumaçante no meio de um mar de homens confusos e assustados. Os gritos de desespero dos sobreviventes apenas agregava ao horror que se mostrava cada vez mais visível entre os homens de Irgalmas.

Carmine desceu ao solo, na frente de uma vanguarda de lanceiros, e chutou um dos soldados para trás, o impacto foi tão forte que o homem foi erguido no ar e lançado de encontro aos outros que se encontravam atrás, abrindo um buraco em seu pelotão. Um espadachim aterrorizado tentou atingi-la com uma estocada baixa, mas a mercenária o puxou pelo pulso e o fez rodopiar pelo ar como uma funda, usando o seu corpo de arma contra seus próprios companheiros. O viajante se viu tão absorto pela destruição que mal ouviu as palavras de Orson, mesmo que tivessem sido gritadas logo atrás de si:

– POR QUE VOCÊS ESTÃO AÍ PARADOS!? AVANTE!!

Não houve cantoria dessa vez, ou sequer um avanço organizado, o pequeno agrupamento adentrou os portões defeituosos da cidadela com um grito de fúria, armas em punho e sangue nos olhos. O primeiro inimigo que Ion visualizou foi um rapaz não muito mais velho do que ele próprio e, ao mirarem um ao outro, viu apenas medo. Apertou a empunhadura de sua espada, mas travou em seu lugar quando viu o seu inimigo largar a lança no chão e jogar o elmo sobre a grama queimada, com os lábios trementes e uma voz balbuciante:

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora