PARTE 2 / CAPÍTULO 9: O MONGE ORGULHOSO

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Mihai atravessou o corredor o mais rápido que pôde, indo de encontro a uma anciã em humildes trajes de criada que fechava cuidadosamente uma porta atrás de si. Passou apressado sob os olhares de alguns espadachins contratados que jogavam dados a um canto da cozinha, privando-se de comentar sobre os jogos de azar sendo realizados em plena luz do dia dentro de seu templo. Tinha coisas mais importantes para tratar no momento.

A idosa carregava uma bandeja metálica que outrora sustentava uma tigela de biscoitos, torradas e um bule de chá, mas agora se encontrava vazia. O monge se posicionou cautelosamente ao seu lado e lhe falou em tom conspiratório:

- E então, como ela está?

- Ainda cansada. Exausta, talvez. Pobre criatura, não comia nem bebia nada há dias. Aparei uma boa parte de seu cabelo também, estava queimado como carvão. Uma pena. Graciosa como é, devia cuidar dele como um jardim.

- E os curativos?

- Aguentando bem. As feridas de menor gravidade já fecharam quase todas e os ossos já parecem ter começado a remendar. Deus seja louvado, nunca vi alguém se recuperar tão rápido. Quem sabe não seja mesmo um anjo. Seria algo maravilhoso, um verdadeiro presente dos céus.

- Não é um anjo. É uma criatura, um monstro perigoso. Nosso Senhor não enviaria nada tão compurscado ao mundo, ainda mais à vista de servos fiéis.

- Deus age por vezes de maneiras incompreensíveis.

- Anjos são personificações da luz e bondade, não são feitos de carne e por isso não podem sangrar.

- Ainda assim, as escrituras garantem que vestem armaduras e portam espadas, por que o fariam, se não para se proteger de danos físicos?

- Diz isso porque não a viu se erguer das profundezas da terra. Nada vindo dos campos celestes poderia parecer tão maligno.

- Ainda assim, aqui está ela, pisando em solo santificado e curando as próprias feridas como uma salamandra. Como explica isso, senão intervenção divina?

Mihai não soube como responder essa pergunta. Apesar de sua impecável educação, passando por renomadas escolas e os melhores mestres de teologia em Roma e Constantinopla, ainda mal era capaz de sustentar seus argumentos contra Rafaella. A velha devia estar na beira de seus oitenta anos mas ainda era afiada como uma navalha, detentora de um leque quase infinito de conhecimentos miúdos sobre os mais variados assuntos e dona de uma invejável capacidade de raciocínio.

Na teoria, era a responsável pela cozinha e servia como chefe das outras criadas, dentre as quais Nicoleta. Mas, na prática, era a comandante de quase todos os assuntos relacionados aos bastidores da abadia, da cozinha e limpeza a jardinagem e decoração. Suas rugas carregavam o peso dos anos, mas seus ombros firmes e caminhar ereto ajudavam a esconder sua idade avançada. Era um pouco mais alta do que Mihai e o respeito que adquirira dentre os sacerdotes a dera confiança suficiente para encará-lo nos olhos e falar-lhe de igual para igual. O monge não gostava muito de ser olhado de cima pra baixo e, naquele momento em particular, achou que a criada fora por demais confiante, quase beirando o atrevimento.

- De toda maneira – retrucou, com uma ponta de desdém. – Não serás tu a juíza, Grigore decidirá sua sina.

- Ele virá novamente? Não seria mais sábio esperar que a fofoca esfrie na boca dos cidadãos?

- Ele deverá chegar ainda hoje por volta do pôr-do-sol, não te preocupas que os aldeões não serão mais um problema.

O som das gargalhadas e tilintar metálico de copos vindos da cozinha anunciavam o porquê. Nada mais no vilarejo era capaz de passar pelas espadas contratadas pelo abade.

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora