PARTE 2 / CAPÍTULO 14: UM BOM PRESSÁGIO

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A noite caíra com rapidez. De leste a oeste, o firmamento resplandecia com o brilho das estrelas e a lua em toda a sua plenitude, amarela e enorme. O vento soprava em brisa, sereno e não tão gelado quanto imaginava que seria mais cedo, o que indicava que suas mulas estariam seguras por mais aquela madrugada.

"Uma boa noite. Um bom presságio." – pensou Ion, ao caminhar de sua casa em direção ao terreno da igreja.

Não teria a escuridão como aliada, mas poucas coisas haveriam de deixar o viajante apreensivo naquele momento. Não havia mais motivo para se afligir em relação ao destino de seus produtos, àquela mesma hora do dia seguinte seus animais estariam seguros e aquecidos nos estábulos da igreja. Pagaria então Lucien e Zamfir, quitando suas dívidas com a família Calvamani, permitindo que finalmente contasse o excedente e repartisse com Petru os lucros do que teria sido, muito possivelmente, a última viagem em conjunto com seu irmão.

Ainda não havia discutido isso com ele, visto que não se encontrava em casa quando voltara da pescaria, o que era quase um alívio naquele momento. No fundo, Ion sabia que não poderia fugir dessa conversa para sempre, principalmente porque a ideia de viajar sozinho vinha se tornando cada vez mais atraente.

Teria mais liberdade para decidir os caminhos a serem percorridos e não teria mais de dividir o lucro das vendas. Petru podia ser excessivamente cuidadoso de vez em quando, evitando percorrer as estradas à noite, sob a chuva ou quando não tivessem provisões o suficiente, mesmo se estivessem a apenas algumas horas de seu destino. Suas próximas viagens haveriam de ser mais rápidas e com menos paradas antes de retornar à vila, o que provavelmente aumentaria a margem de excedente de seus produtos. Juntaria ouro mais rápido, compraria um barco e se uniria à frota comerciante de Pi. Quem sabe no futuro teria ouro suficiente para montar sua própria frota. As possibilidades eram inúmeras.

Não demorou a chegar ao prédio da abadia. Apesar da hora avançada, podia-se ver o tremular de diversas chamas tanto no primeiro quanto no segundo andar. O som de vozes graves, risadas e tilintar de copos se espalhava pelo pátio e quebrava o que deveria ser o silêncio absoluto de uma noite agradável. Os mercenários, ébrios e dançantes, festejavam em volta de uma grande fogueira no coração do templo, distraídos demais para reparar em um viajante franzino escalando um dos muros laterais.

Conforme o combinado, Ion se esgueirou até uma das janelas mais à esquerda do primeiro andar e bateu três vezes na madeira. Mihai não demorou a revelar o seu rosto, convidando-o a entrar no cômodo.

– Estávamos aguardando tua chegada, senhor Martinescu – saudou-o o sacerdote, deixando escapar uma rara risadela. – Não deveria ter te incomodado com uma visita tão furtiva, do jeito que esses homens bebem não teriam te incomodado mesmo que entrasses pela porta da frente. Por favor, fica à vontade.

– Alguém está de bom humor – Ion limpou as solas gastas e enlameadas na pedra exterior e se contorceu através do espaço apertado. – Achei que você fosse a última pessoa do vilarejo a aceitar esse tipo de coisa no meio da...

O resto da frase morreu na boca de Ion ao se deparar com um par de olhos verdes e atenciosos no outro extremo do quarto. A garota com cabelos de sangue sentava confortavelmente na cama de Mihai, pernas e braços cruzados, acompanhando a entrada desajeitada do novo convidado com óbvia curiosidade. Para o desespero de Ion, uma leve flexão em seus lábios mascarou uma risada contida.

– Pensei que estivesse sozinho. – resmungou Ion, sentindo o rosto enrubescer.

– Estávamos em meio a uma atividade. É bom que tenhas chegado cedo, poderás observar algo interessante, só levará um minuto.

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora