O 9º FRAGMENTO: UM ENCONTRO DE DOIS MUNDOS

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No dia seguinte, todo o primeiro período da manhã se repetiu como no dia anterior. Leina fingia ouvir a leitura lenta e monótona do "Fundamentos da Biologia" pelo professor Francis, enquanto este arrastava sua figura imponente pela sala. Os olhos da garota se detinham na janela que dava para o exterior da escola e sua mente viajava em devaneios.

Pensava em Reiwan e no quanto desejava em breve poder ter uma conversa de verdade com ele, sem uma grade de ferro a separar os dois. Mas pensava, principalmente, na recepção de Merrik ao chegar tarde da noite em casa. Ela o flagrara de casaco e telefone em punho, gritando com alguém sobre o desaparecimento de sua protegida. Seu rosto estava vermelho e e ele gritava com tanto fôlego que as veias de sua têmpora pareciam a ponto de explodir.

Ao vê-la entrar na sala, sua expressão passou de alívio a fúria quase instantaneamente. Correu em sua direção e a segurou pelos braços, fazendo-a olhar em seus olhos.

– Por Megerash, eu estava a ponto de sair atrás de você – exclamou ele, rouco. – O que eu disse sobre atrasos? Nunca mais faça isso!

Ele não escondera seus olhos mareados ou os lábios trêmulos. Leina não soube o que falar e não deu nenhuma uma explicação, apenas o fitou atônita por alguns momentos até que ele a soltasse. Ele se voltou, então, ao armário superior para encher um copo de sua bebida marrom, enquanto ela se dirigiu furtivamente para o quarto sem se preocupar com o jantar. Depois eles não se falaram mais.

Leina ficara estarrecida com a preocupação de seu tutor. Ele sempre fora tão estrito e impessoal, nunca imaginara que um simples atraso poderia afetá-lo daquela forma. Ao levantar-se naquela manhã, não o viu em casa. Havia apenas um sucinto bilhete escrito de forma apressada pregado na geladeira:

Surgiu um compromisso urgente. Seu café está na geladeira e o jantar será entregue na recepção por volta das vinte horas, não me espere acordada.

Com uma ponta de culpa, Leina vira-se contente por não precisar ter de se preocupar com o horário em que voltaria naquela noite.

Enquanto o professor Francis discursava sobre a osmose no funcionamento celular, Leina cerrava os lábios acometida por um intenso e repentino remorso. Embora ela morasse com Merrik já há algum tempo, sempre procurara manter uma distância segura de suas inúmeras regras e imposições. Não havia sido muito difícil, o tutor era um homem naturalmente lacônico e sempre muito liberal quanto às escolhas de Leina.

Mesmo sendo tão rígido, ele nunca a forçara a fazer nada. Não precisava. Sua presença e ar de autoridade garantiam, na maioria das vezes, a sua obediência. A garota se arrependia das vezes em que Merrik não conseguira, das vezes em que ela agira como um bebê implicante. Ele nunca a repreendia com palavras duras, era sempre o olhar frio de desapontamento que a fazia se morder por dentro. Durante uma troca de argumentos, ela podia se dar conta do quão ridícula estava sendo, mas nunca, jamais, dava o braço a torcer.

No que estaria pensando? A desobediência não a faria ganhar uma discussão, ele era Merrik Noash, comandante da décima segunda divisão do 2º Corpo do Atherum, e respondia apenas ao atherim Carlos Brunet e ao shifir. Ele poderia ter o que quisesse, não forçava Leina a cumprir suas regras não porque não podia controlá-la, mas porque queria deixá-la manter o comportamento independente com que fora criada.

"Eu sou tão tola."

O tutor deixara transparecer na noite anterior a importância que dava à sua segurança. Era um pai disfarçado sob a rispidez de um general, o mais próximo que Leina iria encontrar de uma família. E isso a aqueceu por dentro.

– Então, caros alunos, estudem bem essa matéria. Em especial o concernente ao quinto tópico, "organelas e funcionamento celular", podem esperar uma questão sobre isso na prova da semana que vem – anunciou o professor após o toque que anunciava o fim da aula.

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora