PARTE 2 / CAPÍTULO 2: ANJO CAÍDO

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Ao chegar ao centro do vilarejo, Ion não pôde conter uma exclamação de espanto. Com a exceção de alguns poucos, toda a população parecia estar agora reunida no pátio em frente ao templo. Homens, mulheres, idosos e crianças, cada morador do habitualmente modorrento e silencioso vilarejo prestigiava o discurso do velhinho magro e esquálido que estendia o dedo ossudo para os presentes, tentando fazer a sua voz rouca se destacar ante o barulho.

- É verdade, companheiros! Esta é mais uma conspiração contra nosso já sofrido grupo! Querem nos manter ignorantes, querem arrancar o pouco que nós temos! - exclamava ele, gritando alto. - Não, eu digo! As testemunhas estão aqui para confirmar, está dentro da abadia! Eu vi o céu se abrir em chamas, estrelas despencando como cometas! Irmão Mihai está escondendo de nós! Todos os clérigos são cúmplices do fim do mundo, querem nos manter de fora, querem nos...

E assim ele seguia, interrompido algumas vezes por gritos de aprovação e outras por comentários de deboche:

- Ei, Marius! Bateram na sua cabeça, ou só é senil, mesmo?

Seguiu-se a risadaria geral, o velho retorquia gritando ainda mais alto:

- Não dêem ouvido aos tolos, escutem-me! Entrem na abadia, vejam vocês mesmos! Está lá, estou dizendo!

E recomeçavam a gritar. O viajante espremeu-se entre algumas pessoas até avistar dois homens que conversavam entre si num ponto mais afastado do pátio. Usavam roupas um tanto esfarrapadas, mas não piores do que os trapos sujos que Ion vestia. Receberam-no com sorrisos alegres:

- Olha só quem resolveu sair da cova! - cumprimentou-o um deles, com palmadas amigáveis. - Desde quando está na terra, timoneiro?

- Valentin, Victor... - Ion fez uma reverência vaga, ainda prestando atenção nas palavras de Marius. - Desde hoje cedo. Pela agitação, me pareceu uma boa hora para ancorar.

Valentin riu com o gracejo. Era alto e muito magro, o rosto seco destacava um nariz comprido e afunilado. O outro homem, Victor, era mais atarracado, tinha os olhos fundos e lábios muito avantajados; sua calma e introversão contrastava com a personalidade explosiva e bonachona de Valentin, cumprimentara Ion com apenas um sorriso.

- Concordo, melhor hora impossível - retrucou Valentin, risonho. - Estávamos para ir pegar cerveja com o Henri, nosso amigo aqui clama por uma Gloriosa!

Victor bufou, sarcástico.

- Não eu. O dia está ruim para beber. Irmão Mihai está na abadia, mandará chamar os mercenários - previu ele, pesaroso.

- Não seja tão pessimista! - disse o amigo, sem perder a graça. - Então, bebe conosco? - propôs, voltando-se para Ion.

- Vou recusar - disse o viajante entre os dentes, vindo-lhe à mente a bebida borbulhante de Henri. - Tenho de fazer uns serviços, fica para a próxima vez.

- Ora, não seja afeminado! Pois chame seu irmão, onde está Petru?

- Negociando a taxa da alfândega com os cobradores, a uma hora dessas.

Valentin exclamou um "Ah!", convencido. Ion se voltou para a multidão e observou as pessoas, curioso. Marius ainda os incitava com exclamações e ameaças apocalípticas.

- Então, algum de vocês sabem o porquê do rebuliço?

- Estrelas caindo do céu! – exclamou Valentin, com certo ceticismo.

- Não, não é isso. Quer dizer, não é a primeira vez que ouvimos falar de algo parecido. Lembra de quando ele disse que o mar nos engoliria se não estendêssemos uma colcha de pele de cabra na frente de nossas casas ao anoitecer? Ou de quando ele correu atrás de algumas crianças com uma pá, alegando que estavam pondo vermes em sua bebida? Ou ainda de que havia alguém na vila praticando magia negra, porque toda noite ele era visitado por pequenos diabretes que puxavam suas calças enquanto dormia? Achava que ninguém mais dava trela às besteiras dele.

Neve MaculadaOnde histórias criam vida. Descubra agora