QUERIDO DOUTOR

248 37 48
                                    

  Um conto de FlviaBorba2

Desde muito cedo na vida, Ariel percebeu que precisaria ser muito valente e teria que suar bastante para atingir seu grande objetivo: Dar uma vida decente à sua mãe. Eram só eles dois... E também não pretendia passar a vida toda na situação em que viviam. As dificuldades, ao contrário das oportunidades, eram muitas. A poliomielite o acometera ainda bebê, caminhar não era tarefa simples, e demorou para conseguir fazêlo. Andava com um aparelho ortopédico metálico, combinado a uma bota com salto em sua perna esquerda, muito mais fina e curta que a direita.

Sua mãe nunca teve a oportunidade de estudar, cresceu em um orfanato e quando atingiu a maioridade teve que trabalhar para viver. Sua natureza honesta a impeliu para o trabalho duro, mas digno. Passou a trabalhar como doméstica e viver em casa de família, economizando tudo o que podia para conseguir um lugar para morar, não pretendia viver para sempre na casa dos outros. Durante dez anos trabalhou na mesma casa, conseguiu comprar um pequeno terreno e, com a ajuda de seus patrões, construir uma pequena casa. Quando menos esperava, engravidou e teve que encarar sozinha esta gestação, pois seu namorado resolveu que não queria esta responsabilidade para si e foi embora.

Ariel nasceu e contraiu a poliomielite. Sua mãe resolveu trabalhar como diarista quando os patrões tiveram que se mudar para outro Estado, pois eram de uma família militar. Eles a indicaram para vários conhecidos devido à sua idoneidade e comportamento profissional. Isto facilitou para que ela pudesse trabalhar e acompanhar o pequeno menino. Moravam na casa construída com tanto esforço. Ela olhava para ele e dizia: “Seu futuro vai ser melhor que o meu, filho. Deus há de nos proteger e guiar”. Levou o menino a várias consultas em postos de saúde e hospitais públicos e conseguiu os aparelhos necessários para que ele pudesse andar. 

A vida acadêmica de Ariel começou conturbada. Era o diferente da turma, aquele que não podia jogar bola nem correr na hora da educação física. Isto era um dificultador na socialização com os colegas, mas nada que a natureza serena e afável do menino não conseguisse resolver. Só que isso levava mais tempo. Sempre com um riso no rosto e disponível para ajudar os colegas, foi conquistando a todos devagarzinho.

Ao contrário de suas pernas, sua mente funcionava à perfeição. Inteligente e estudioso que dava gosto! Estudou desde sempre na rede pública de ensino, e era primeiro aluno da turma e frequentador assíduo da biblioteca, pois não tinha condições de comprar a maioria dos livros dos quais precisava. Com sua dedicação e muitas horas de estudo, ao concluir o curso ginasial, antiga denominação do ensino fundamental, Ariel submeteu-se ao teste de ingresso para cursar o ensino médio no Ginásio Pernambucano, escola pública de referência no Estado e que já formou pessoas ilustres nas artes e na política brasileira. Fez provas de matemática, português e ciências e foi aprovado. 
Foi um tempo de preparação pesada para o vestibular. Muito sacrifício em ir a pé à escola várias vezes, por não ter dinheiro para passagem. Quanto mais dificuldades, mais Ariel estudava. Amava biologia, ciências e química e sempre soube que Medicina era sua vocação. Concluído o ensino médio, não foi surpresa para seus professores quando o rapaz foi aprovado para este curso na Universidade Federal de Pernambuco, muito bem colocado, diga-se de passagem... Que dia memorável! Esse foi para ficar bem marcado na história. 

A universidade fazia Ariel muito feliz, e no decorrer do curso viu que tinha feito a escolha correta. Sua preferência sempre foi a cirurgia, mas nem tudo tem solução. Não teria como passar exaustivas horas de pé para operar... Nada de desmotivação. Se não podia ser cirurgião, teria que ter outra especialidade em mente. Continuou a estudar e se aplicar, como sempre dos melhores alunos. Seus professores que sugeriram a oftalmologia, por perceber o talento que Ariel tinha para esta área. Mas o preço do material para estudo e os equipamentos para montar um consultório de oftalmo eram muito caros! E ele teria desistido dessa especialidade, se não fosse o incentivo dos professores, que sempre lhe diziam: 

- Tem livros na biblioteca... Os que não tiver lá, nós emprestamos para você. Não desista. É sua disciplina favorita, não se desperdiça um talento assim...

E assim, com as melhores notas, ele virou Dr. Ariel Andrade, oftalmologista. Trabalhou no hospital das clínicas e “ralou” um bocado até abrir seu próprio consultório, onde atendia a todos com simpatia e muito cuidado. Tinha muitos pacientes, e adorava conversar com eles. Contava sempre a história de superação que foi sua vida. Não para se exibir, nem para mostrar bens materiais que tinha. Mas para compartilhar a ideia de que “se quiser e fizer por onde, você consegue”. Era um agente de motivação e um esbanjador de bom humor.

Ao observar a agenda daquele dia, viu que sua paciente Flávia tinha consulta e pensou: “Ah, hoje é dia de boa conversa”!

Chegou à sala de espera cumprimentando a todos:

- Boa tarde, pessoal!

- Boa tarde, Doutor!

- Pode entrar, André. Você se incomoda se Flavinha entrar conosco para sua consulta?

E assim era toda vez que estas criaturas se encontravam no consultório. Dr. Ariel atendia um, dois...  Sempre com sua paciente preferida, como ele a chamava, na sala lhe fazendo companhia e desfrutando de uma boa conversa. Ela geralmente era a última a ser atendida... E se sentia muito feliz por isto!

- O que te traz aqui hoje, além de minha excelente companhia? (risos)

- Exames de rotina, Dr. Ariel.

- Senta aqui... Abre o olho... Vou usar uma luz forte, sei que é horrível pra seu astigmatismo, mas paciência! Consegue ler a primeira linha? A segunda?

- Fácil...

- Vou mudar as lentes e você me diz... É melhor assim.... Ou assim? Desse jeito... ou do outro?

Sempre saía com a prescrição das lentes no bolso e o coração cheio de alegria, por estes tipos de depoimento que ouvia do sábio médico:

“Flavinha, sou um homem realizado – Dizia ele. Você conhece minha história, depois de tantas consultas cheias de “blá, blá, blá” e esperar tardes inteiras para ser atendida por último - (risos)”.

“Minha mãe teve o conforto e o descanso merecidos, depois de tanto trabalhar na vida. Infelizmente já se foi, o trabalho pesado e as privações pelas quais passou cobraram seu tributo... Mas ela sempre me disse, depois que me formei e comecei a trabalhar, que “já podia morrer feliz”. Eu acho “morrer feliz” meio contraditório - Dizia ele, rindo bastante”. 

“Casei, constituí família, tenho filhos lindos, inteligentess e responsáveis, mudei realmente nossas vidas. E tento ajudar a melhorar outras, na medida do possível”.

“Sempre fui adepto da alegria, apesar das muitas dificuldades. E tento passar isto para as pessoas. Acho que nasci para isto. Para ser feliz e espalhar felicidade.”

Dr. Ariel atendia muitas pessoas sem cobrar nada. Coletava óculos usados para reaproveitamento. Fazia caridade sempre que podia. Era um homem lindo, em todos os aspectos. O significado de seu nome era bem apropriado: “Ariel: Nome de um anjo ou espírito do ar. Significa leão de Deus. Indica doçura, suavidade e sentimentos elevados. A criança assim chamada tende a alcançar grande realização intelectual e espiritual e se destaca pelo amor ao próximo”. 

Como pode um anjo desses ficar muito tempo longe do paraíso? 

Ele já partiu para a pátria espiritual e deve estar em excelente lugar. Tudo que ele fez na vida foi com amor, esforço, honestidade, caridade e deixa um grande legado em exemplo para todos nós. E é lembrado com muito amor e saudades por todos aqueles que tiveram a ventura de tê-lo conhecido.

“Não se mede o valor de um homem pelas suas roupas ou pelos bens que possui, o
verdadeiro valor do homem é o seu caráter, suas ideias e a nobreza dos seus ideais”

Charles Chaplin.

** Esta é uma história verídica.

Fim.

Contos WattpadianosOnde histórias criam vida. Descubra agora