Aquele dia ficou conhecido como o dia da gota dágua, o dia que eu estourei com as conversas de minha mãe. Ela gostava de falar da vida dos outros, julgando, fazendo fofocas e eu detestava isto. E piorou ainda mais quando o alvo de suas maledicências passou a ser a filha da vizinha, que foi vista aos beijos com uma colega de trabalho. Passou a chamar a menina de sapatão e eu odiava este termo, não por ele significar que a menina era lésbica, mas por ter uma entonação condenatória, como se fosse um crime ou se fosse algo vergonhoso amar alguém do mesmo sexo.
— Mãe, o nome dela é Jennifer. Deixe a menina em paz, não interessa a nós quem ela beija ou não.
— Fico com pena da mãe dela, Valéria, o povo fica falando, ela deve ficar com vergonha.
— O povo, não é? Assim como a senhora está fazendo agora? Deixe a vida dos outros em paz, mãe.
— Tu adoras ficar me regulando, não é?
— Não, senhora. Perceba que eu só faço isto quando tu ficas falando mal das pessoas e fazendo fofocas, em nenhum outro caso.
— E o que mais tem para fazer numa cidade como essa? Todo mundo fala, comenta e eu não sou diferente de ninguém.
— Podemos tentar mudar isso, dar exemplo. Cada um tem o direito de viver a vida como quer. Quem ela beija ou deixa de beijar não influencia tua vida em nada, mãe. É a vida dela, não a tua. Quando alguém puxar esse assunto com a senhora, simplesmente diga a verdade: que não tem nada a ver com isso. Vigia teus pensamentos para só entrar coisa boa. Pratique o que se diz na tua igreja, a amar o próximo, e não ficar fofocando dele, isso é errado.
Mas ela não se rendia. Encheu tanto meu juízo que eu não aguentei e passei o pito nela:
— Se a mãe da Jennifer tem vergonha dela eu não sei, mas sei que eu fico com vergonha quando vejo a senhora fazendo estes comentários na rua e depois ouço todo mundo citando teu nome como a maior fofoqueira que esta cidade já viu.
Pronto, a confusão estava armada. Ela chorou, fez cara feia, disse que eu era uma ingrata e que uma filha não diz isso a uma mãe. Como se eu tivesse criado esta fama, e não apenas comentado que era isto que se falava dela pelas costas.
Desisti de argumentar, resolvi dar uma volta para espairecer. Anos a fio ouvindo estas coisas, chega uma hora que não dá para aguentar mais. Queria ver se eu dissesse a ela que não era só a Jennifer que gostava de moças, eu também gostava delas. Mas era muito cautelosa, não me expunha como a vizinha. Não queria problemas com mamãe, o momento de minha libertação estava próximo, estava chegando o dia em que eu iria me mudar de casa, embora ela não soubesse. Ia começar a faculdade de design gráfico na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e já pretendia estar morando só quando isto acontecesse.
Ganhei um agradável apartamento de dois quartos bem perto da faculdade, era um dos vários imóveis que meu pai havia deixado de herança quando faleceu. Eu era a filha mais nova, meus irmãos já estavam formados. Minha mãe transferiu antecipadamente um imóvel a cada um dos filhos como presente ao entrar na universidade. Meus irmãos permaneceram morando com ela até a formatura e alugaram seus imóveis durante este tempo. Mas eu pretendia habitar o meu, e já estava preparada para os protestos e batalhas que adviriam desta decisão. Bah, ia sossegar meu facho morando só, chega de estresse.
Recebo parte da pensão de meu pai, que era militar, e também faço alguns trabalhos gráficos, folhetos e capas de livros geralmente, pois tenho muita facilidade, adoro esta área e sempre gostei de ganhar dinheiro. Tenho condições de me manter sem depender de ninguém, sei que sou afortunada por isto. Se eu batesse de frente com minha mãe ou contasse meus planos de morar só ela poderia não passar o apartamento para o meu nome e eu não queria isso de jeito nenhum. Agora estava sacramentado, a escritura já estava registrada e eu já podia me preparar para tomar conta de minha vida.
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Contos Wattpadianos
Short StoryQue tal encontrar em um único livro todos os seus autores favoritos? Que tal conhecer a cada semana o trabalho de um escritor até então desconhecido para você? Se você curtiu as ideias acima, então aqui é o seu lugar. Entre sem bater à porta, sente...