Plena

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Estava tudo bem, apesar de tudo.

Minha mente estava quieta, sem nenhuma voz e eu só queria ficar sozinha no chão do quarto, aproveitando o silêncio e a estranha sensação de segurança que me invadia. Acho que foi o primeiro dia que não temi o garoto de pintinhas.

Foi aí que Allison apareceu. Ela me disse para sair do quarto e eu saí, pediu que olhasse Stiles e eu olhei, falou que eu aproveitasse que ele estava dormindo para ir na cozinha, eu fui. Sussurrou para que eu pegasse a maior faca e eu peguei, orientou que a era a hora de matar Stiles e eu travei.

Fui para o quarto, assustada e me tranquei lá. Eu realmente queria mata-lo? O que aconteceria se eu fizesse isso? E se ele estivesse falando a verdade?

Tentei pensar, raciocinar, mas Allison começou a berrar e a única coisa que consegui fazer foi berrar com ela. Naquele momento, percebi que a solução não era matar Stiles, aquilo não mudaria nada, eu tinha que acabar com minha própria vida, só assim esqueceria de tudo, calaria as vozes na minha cabeça para sempre.

Stiles não permitiu que eu concretizasse meu plano, pois ele entrou no quarto e só a sua presença me deixou completamente desnorteada. Os gritos de Allison não permitiam que eu o ouvisse, no entanto, a expressão no seu rosto rasgava meu interior, sentia pancadas na minha cabeça e já não conseguia respirar, ele estava triste, preocupado, sim, preocupado comigo.

Imaginar alguém com aquela expressão por mim, era tão surreal que não sabia como reagir. Acho que minha boca se movia, acho que falava com Allison, mas não entendia o que eu mesma dizia, não compreendia o que eu queria fazer.

Estava perdida, confusa dentro da minha própria mente, mas, escutei algo que Stiles falou. Minha princesa, ele me chamou de princesa.

Bastaram aquelas duas palavras para todos os abusos me espancarem com lembranças. Pensei em Kevin se esfregando em mim, tocando no meu corpo, mostrando suas partes imundas, me obrigando a encostar nos lugares asquerosos, sussurrando perversidades no meu ouvido, falando o quanto meu corpo estava horrível e que depois dele, nenhum homem jamais teria coragem de me tocar.

"Você é minha agora, princesinha. Todo dia vai se lembrar de como eu fiquei por cima de você, como a fiz gritar. ", essas palavras, daquela voz melosa, da primeira vez que ele me abusou, fez com que eu enlouquecesse.

Ninguém mais podia fazer isso comigo! Stiles não podia me chamar daquela forma, eu não permitiria que ele fizesse isso!

Eu cravei a faca no seu ombro e me senti bem. A sensação de afundar a lâmina em sua carne, de ver seu sangue espesso escorrendo, fazia com que eu me sentisse viva, capaz de agir.

Ele se defendeu, me esmagou contra seu corpo e o único pensamento que tive foi: "vai ser agora, ele aguardou a hora certa". Esperei o toque invasivo, a dor, o nojo de mim mesma, a exposição e os movimentos brutais, rasgando meu interior, mas em vez disso eu encontrei magoa, indignação e confusão.

Os olhos castanhos eram expressivos e por algum motivo, quando o garoto disse que tentava me ajudar, eu acreditei nele. Percebi a sinceridade no seu rosto e pensei no tempo que estava com Stiles, eu estava completamente exposta, dependente, ele fazia tudo por mim, podia fazer qualquer maldade que quisesse e ninguém descobriria, ninguém impediria, mas em nenhum momento ele fez algo assim.

— Por favor, não desiste de mim. — Eu só consegui implorar, me sentindo fraca, confusa, pois apesar do medo que ainda me invadia, eu sabia que só ele era capaz de calar as vozes em minha mente.

Eu não controlava Allison, não controlava meus instintos animalescos, meu ódio, contudo ele controlava. Com uma influência sobre meus sentimentos, sobre meu corpo, muito maior do que eu tinha, algo que não conseguia expressar ou compreender.

E então, quando percebi, lábios finos, delicados, se encontraram com os meus.

Paralisei, sem esperar por aquele toque que por alguma razão, não me causou medo. Não me senti violada, oprimida, pelo contrário, aquele toque gentil em minha boca foi tão carinhoso, tão delicado, tão amoroso que Allison sumiu, meu medo sumiu e só sobrou em mim uma surpresa muda.

— Eu nunca vou desistir de você.

E dessa vez, eu acreditei nele. Sem duvidar, sem hesitar.

Não precisei analisar sua expressão, pensar ou me xingar por ser estúpida, apenas escutei e soube que ele não mentia e aquilo, revirou meu estômago, invadiu meu peito com um calor desconhecido, fez com que eu sentisse vontade de abraça-lo, prendê-lo para perto de mim.

— Eu jamais desistiria de você, vai ficar tudo bem, Lydia, eu vou fazer tudo ficar bem. — Ele sussurrou, a voz mansa, mas seus olhos estavam preenchidos por uma surpresa grande o suficiente para ele parecer esquecer o ombro ferido.

Nós ficamos parados, em silêncio, seu corpo sobre o meu. O sangue gotejando no piso, meus lábios formigando e minha mente completamente muda, sem pensamentos, eu só conseguia sentir o tremor correr pelo meu corpo com uma sensação desconhecida e maravilhosa de prazer.

Depois do que pareceu uma eternidade e ainda assim, muito pouco, Stiles saiu de cima de mim, caindo ao meu lado e encarando o ombro. Sua expressão de dor me fez sentir uma culpa que me pegou desprevenida.

— D-desculpa, eu...

— Ele a chamava de princesa, não é? — Stiles interrompeu minha tentativa de desculpas, com a pergunta.

Como ele sabia? Como ele conseguia entender dessa forma?

Sem confiar na minha voz, concordei com a cabeça. Tinha a sensação de que ele conseguia ler cada pensamento meu.

— Nunca mais eu vou dizer essa palavra. — Ele sussurrou e gemeu de dor, eu continuei paralisada, sem reação. — Não faz essa cara, Lydia, eu não estou irritado.

Eu não fazia ideia da minha expressão e novamente, permaneci calada e imóvel, enquanto ele gemia, lutando para levantar. Não tive coragem e nem força para ajuda-lo, os músculos das minhas pernas estavam molengas, só não sabia dizer se era por causa do sangue no chão, da culpa por ter machucado Stiles ou pelo mesmo motivo da dormência em meus lábios: o beijo, que foi delicado o suficiente para, pela primeira vez desde que sai do inferno, me sentir amada e plena.

Stiles, com muita dificuldade, conseguiu levantar se apoiando na parede. Sai do estado de torpor quando me dei conta da gravidade da ferida, ele estava muito pálido, os lábios roxos e o sangue continuava a jorrar.

Quando tentei ficar de pé, para finalmente ajuda-lo, o garoto desabou no chão, inconsciente. Senti o ar escapar pela minha boca, meu coração acelerou e mesmo sem entender o motivo, senti um desespero ao vê-lo caído.

— S-stiles? — Gaguejei o seu nome, me aproximando dele com receio, mas o garoto estava desmaiado.

Aniquila-meOnde histórias criam vida. Descubra agora