Capítulo 4

6.1K 510 153
                                    

Ano de 2005

"Só não ferra com isso, Ellie. Ou mamãe vai me matar, logo depois de matar você."

Com as nada doces palavras de Tracy em mente, visto a calça preta, uma camisa branca que passei mais cedo e dobro meu meio avental com cuidado para colocá-lo na mochila. Por incrível que pareça, considerando todo meu péssimo histórico de trabalho por causa do meu temperamento explosivo, como Tracy diz que tenho, ainda estou pensando se ter aceitado o emprego de garçonete de ricos esnobes foi a melhor decisão que tomei na vida.

Já estive em quase todos os tipos de profissões que alguém poderia imaginar. Balconista, caixa de supermercado, entregadora de jornais, garçonete de lanchonetes, e a lista continua. Nunca fiquei em nenhum por muito tempo. Digamos que... bem, meu último cliente achava que era o dono do mundo e por isso tinha o direito de levantar o tom de voz para gritar comigo quando houve uma confusão com os pedidos. O sangue subiu à minha cabeça. Foi um dia e tanto. Meu punho ficou doendo, e por pouco — muito pouco — não fui denunciada por agressão. Talvez a ameaça de ser fichada foi o que abriu meus olhos para como eu deveria começar a agir, a não ser que quisesse parar na cadeia e ver o sol nascer quadrado pelo resto da vida. Não que eu não saiba como lidar com fregueses, quero dizer, sei exatamente como ser aquela garota doce e legal que arranca elogios e sorrisos divertidos das pessoas ao seu redor. A menina boazinha que segue as regras, baixa a cabeça e dança conforme a música toca. Já vi muitas dessas por aí para saber o que devo fazer para ser igual a elas.

Só que eu não sou essa garota. Nem ao menos sei o que sou, ou que merda ainda estou fazendo aqui, nessa casa, ouvindo mamãe e papai discutindo mais uma vez tão alto que tenho certeza de que toda a vizinhança está ouvindo. Gritos estridentes. Barulhos de coisas quebrando. Vozes tentando se sobrepor uma à outra. Os sons são mais familiares do que poderia querer, porque esse é o tipo de ritual que regularmente toma conta das famílias que moram no prédio, particularmente no período da noite.

Se fizessem um concurso do pior vizinho ali, teríamos um empate de primeira. Não fui a adolescente sorteada para dizer de boca cheia que minha família é a única problemática num raio de dez metros de distância. Há crianças morando naquele prédio caindo aos pedaços, tão assustadas quanto eu.

Faço minha mochila e em seguida passo pela porta, evitando olhar para a cozinha, onde os dois ainda estão no meio de uma discussão acalorada. Isso é tão normal para mim. Para qualquer um daquele bairro. Uma das poucas coisas boas sobre morar no Vale do Inferno é que todo mundo ali compartilha de algum tipo de vulnerabilidade que coloca todos no mesmo patamar. Os moradores podiam me odiar por ser esquisita e mal-humorada, mas não me odiariam por ter uma casa zoada e uma família bagunçada. Isso era meio que um pré-requisito que qualquer pessoa deveria ter se quisesse morar ali.

Antes de fechar a porta, ouço mamãe falando algo sobre drogas encontradas e a nossa TV que sumiu. Perdi as contas de quantas vezes fomos ameaçadas. Ou de quantas vezes ele me fez fumar cigarros para escapar de um castigo e assistiu a tudo rindo. Sinto que estou perdendo essa luta, porque a cada segundo maçante que passa fumar é a primeira coisa à qual quero recorrer.

Não entendo por que mamãe não o abandona de uma vez por todas. Bob virou um viciado depois que foi demitido do emprego. Desde então, as coisas nunca mais foram as mesmas. E quando digo "nunca", quero dizer por muito, muito tempo.

Dizem que o tempo pode deixar você apático diante de situações estressantes.

Concordo em parte.

Quando eu era mais nova, costumava fugir de casa quando as coisas passavam do limite. Tudo começou quando meu pai levantou a mão para minha mãe pela primeira vez. E então depois para mim, quando não o obedecia nos mais estúpidos detalhes. Nunca fui letrada o suficiente para saber quando uma surra educativa passa a ser violência doméstica. Com o tempo, deixei de fugir e passei simplesmente a aceitar tudo como se estivesse em estado catatônico. Perdida dentro de minha cabeça, criando fabulações para escapar do mundo ao meu redor, pensava coisas como: "Tudo vai passar. Tudo iria passar. As coisas vão melhorar." E as coisas realmente passavam. Melhoravam a ponto de eu achar que estava bom demais para ser verdade. Mas então, de um segundo para outro, tudo piorava. Minha vida é essa montanha-russa, com altos e baixos. Não conheço nada diferente disso. Acredito que nenhum daqueles moradores, também.

Ás de Copas [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora