O homem sob a Coroa - Parte I

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"Um macaco é uma gazela aos olhos da mãe".
Provérbio Egípcio
 

A noite no deserto seguiu gelada no acampamento próximo a Megido, Tutmés finalmente pode descansar e receber os cuidados devidos aos seus ferimentos. Em sua mente, ainda pairava a imagem dos olhos do rei de kadesh tendo a vida ceifada em suas mãos.

O jovem rei já coordenava o exército e participava de modestas campanhas durante o reinado de sua madrasta, por algumas vezes havia findado a vida de inimigos, mas era a primeira, que ele via a luz dos olhos de alguém se apagar diante dos seus, por mais que a razão lhe desse vazão para o ato, havia algo inquietante na morte do rei de kadesh.

Desde muito pequeno Tut foi criado para ser faraó, filho de uma das concubinas reais, não teria herdado o trono caso uma das esposas oficiais de seu pai lhe desse um filho, mas o herdeiro de sangue puro não vingou, e antes de morrer, Tutmés II assegurou o direito do trono ao garoto do harém, cujo uma estátua de Amon caiu aos seus pés, legitimando assim seu direito ao trono.

Preparar um faraó exigia anos da vida de dezenas de professores, tutores, mestres e sacerdotes, embora Hacheptsut não reconhecesse o direito do filho de uma amante ao trono, ela nunca negou - lhe a educação de um faraó. O menino cresceu com todo o conforto, sua infância fora recheada de conhecimento que abrangiam todos os aspectos da vida no Egito, de matemática a religião, de agricultura a astrologia. Todas as línguas do deserto conhecidas foram aprendidas antes dos 12 anos de idade, aos treze ele já demonstrava grande destreza com espadas e facões, aos 16 já participava de campanhas nas fortalezas ao norte do Nilo junto ao exército.  Ele aprendeu tudo que era necessário para ser faraó, tudo para ser um guerreiro e um grande administrador.
Meses depois do início conturbado de seu reinado, sua fama já se alastrava além do deserto, como o faraó que travava a suas batalhas lado a lado de seus soldados. Cada vez mais ganhava a fama que todo o faraó desejaria "amado por seu povo, temido por seus inimigos". Tutmés parecia a todos, seguro e indestrutível, muitos diziam que o próprio Mont, Deus da guerra, sussurrava em seus ouvidos.  

Mas quem era o jovem sob a coroa? Um faraó, que tentava sufocar o homem constantemente. Ele vira seu pai enlouquecer e morrer aos poucos. No seu curto reinado nunca governou, o controle estava nas mãos do vizir, da rainha mãe ou de suas esposas. O pequeno viu até mesmo escravos fazerem piadas com a condição de seu pai e constatou que não havia espaço pra fraquezas num faraó.

Por mais que o ferimento em suas costelas queimasse, ele respirava fundo e negava - se a tomar suco de papoula a fim de aliviar a dor, ele era um Deus vivo e mesmo que seu próprio íntimo não cresse em tal origem divina, ele faria com que todos acreditassem. 

— Perdoe-nos faraó, mas não acha perigoso levar para Tebas filhos e filhas de rebeldes? Não seria melhor matá - los agora na frente de seus pais para que sirvam de exemplo? — Indaga Dedun, o mais velho de seus comandantes, um negro extremamente forte, que havia se unido ao exército egípcio ainda no reinado de Hatsheptsut. 

— Confie em seu faraó, eu sei o que estou fazendo, se tudo correr bem, essas crianças crescerão e voltaram pra suas casas fiéis ao reino do Egito, e não teremos de nos preocupar com armações inimigas. Caso contrário daremos um exemplo digno aos seus pais e a todo que pensarem em se levantar contra nosso reino. Agora me deixem sozinho, comemorem a vitória ou descansem, logo estaremos cruzando o deserto de volta ao Nilo. — Respondeu sem delongas a fim de se livrar da companhia de seus comandantes, para que pudesse aliviar sua dor e cansaço com algumas taças de vinho.

O alvorecer no deserto era tão quente quanto o sol a pino, na cidade de Megido reinava um silêncio mortuário, os populares cochichavam aliviados sobre as decisões do faraó. De fato esperavam que muitos fossem levados como escravos ao Egito, mas os egípcios exigirão apenas os filhos dos ricos monarcas, reis e comandantes de Canaan. 

Taufik observava pela janela o cerco sendo desmontado, enquanto carroças recheadas de mantimentos, armas e tesouros deixavam a cidade. Seu pai estava morto e ele embora um guerreiro exemplar ainda não tinha idade ou experiência para governar kadesh, assim, seu tio Pamikut havia sido elegido como seu tutor até o jovem de 17 anos poder reinar sozinho.

Taufik possuía dois  irmãos legítimos e inúmeros bastardos, Taurus de cinco anos e a bela Aliah que completará sua décima quinta primavera. Eles seriam entregues ao Egito como tributos e enquanto sua mãe os preparava e despedia-se de seus filhos amados, Taufik permanecia estático na janela. Em seus pensamentos reinava apenas a imagem de como e quando vingaria seu pai, sua vontade era usar todas as forças que restavam em Megido para atacar o exército, mas além se ser um suicídio,  jamais receberia o apoio dos comandantes e monarcas que agora pareciam cães assustados dispostos a entregar os próprios filhos ao seu algoz.

Aliah respirava fundo tentando conter as lágrimas, não queria assustar o pequeno Taurus sobre o destino incerto que os aguardava no Egito.  Como toda a princesa já sabia de seu futuro desde muito pequena, seria educada e se casaria com algum monarca ou alto comandante escolhido por seu pai, que provavelmente garantiria uma aliança ou ainda mais riquezas a sua família. Com sorte seu marido seria gentil e ela uma boa esposa, teria filhos, honraria a Deus e talvez pudesse ver seus netos nascerem. Mas naquele momento tudo parecia um sonho longínquo, a mãe tentava disfarçar sua preocupação com o destino de suas crianças falando sobre as maravilhas que veriam no Egito e de como o faraó havia prometido que seriam bem recebidos em Tebas. 

A jovem usava seu melhor vestido adornado com delicados fios de ouro, seus cabelos cacheados desciam pelas costas esguias e delicadas da menina mulher, de pele morena como de sua mãe e olhos claros de seu falecido pai. Sob a cabeça um véu azul celeste, que em sua tradição denunciava que era mulher, mas ainda donzela sem o compromisso de um casamento.

Taufik observa a mãe terminar de ajustar a túnica do irmão, empolgado com a grande viagem, pois era pequeno demais pra entender as circunstâncias desta.

— Os adorna como se fossem para uma festa, no entanto nós sabemos que depois de cruzarem o deserto não passaram de escravos egípcios! — Exclama o jovem.

— Não fale desta forma, o faraó deu sua palavra que serão bem tratados no Egito — retruca a mãe, tentando crer nas próprias palavras.

— Ele arrancou a cabeça de nosso pai, do nosso rei e estamos aqui parados entregando tudo que ele exige.

— Papai está sem cabeça? — Pergunta Taurus confuso, já com lágrimas nos olhos. Aliah acaricia o pequeno e lança um olhar fulminante a Taufik.

— Eu também queria ve-lo morto, não pense que me agrada a ideia de me afastar dos meus filhos, mas não temos escolha, seus irmãos ficaram bem no Egito e os veremos de volta em alguns anos.

— Você sabe que não é verdade, Aliah e as outras meninas jamais retornaram, serão obrigadas a casar com homens do Egito e quanto aos meninos, quando retornarem não pertenceram mais a essas terras, serão tão egípcios quanto o próprio faraó. 

— Pare! Esta assustando Taurus não percebe? — diz a jovem se aproximando do irmão mais velho.

Taufik respira fundo e abraça a irmã, ele afunda seu rosto sob seus cabelos e sussurra algo em seu ouvido, a menina arregala os olhos enquanto o irmão deposita algo em sua mão,  a princesa se afasta ainda com olhar confuso e ele acente com a cabeça e sussurra. 

— Faça. 

A mãe sem perceber o estranho momento entre os irmãos apenas  brinca e beija o pequeno aproveitando os últimos minutos para memorizar cada traço da sua pequena  criança.

Tutmés III - O Faraó Guerreiro  - CONCLUÍDA Onde histórias criam vida. Descubra agora