Emergência

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- Então, hoje vocês iniciam uma nova área da medicina. Mas não é qualquer área, é a melhor! - Ele fala se gabando e rindo em seguida. - Sempre tenham em mente uma coisa: aqui, não temos tempo para sentar e analisar os casos tomando um café. Temos que ser ágeis, afinal, são vidas em nossas mãos, que podem acabar por um errinho que seja.

Esperava que surgisse aquele burburinho de animação, mas não aconteceu. Todos estão mais do que concentrados, como se um paciente fosse chegar a qualquer momento e trazer aquela correria dos nossos sonhos.

- O que foi, gente? - Zabdiel franze o cenho. - Vocês são mais carniceiros do que eu pensei, credo! Se eu pegar alguém olhando pro meu paciente com cara de canibal, eu mesmo mato, entenderam?

Obrigada, Senhor, por trazer o estágio da cirurgia tão rápido, e melhor ainda: do trauma! Sem contar o professor incrível! Será que ele esteve com o Erick há pouco tempo? Lá vem você e seus pensamentos de novo, (S/N)! Concentração, foco e vê se para de pensar nesse homem. Nesse lindo homem, com olhos maravilhosos e que... Olha o trauma!

- Então, quase garantia de que não vamos ter partos por aqui. - Nós rimos. - Mas, se for o caso, sempre chamem um obstetra ou um pediatra. Vamos começar?

O doutor se virou e pôs-se a caminhar e nós fomos atrás. Entramos na ala da emergência, a qual estava vazia. A garagem de ambulâncias fica bem ao lado, há várias macas, muita roupa esterilizada armazenada e um cheiro forte de álcool, visto que a limpeza está sendo feita bem neste momento.

- Aqui é onde acontece boa parte da mágica. Os pacientes chegam, vocês perguntam a um paramédico - Vira-se para Joel, que faz um gesto com a mão - e descobrem o caso, a identidade e a estabilidade, além do tratamento que já foi feito no caminho até o hospital. Dúvidas até aqui?

Eloá ergue a mão e ele aponta, indicando que falasse.

- E se o paciente não for identificado?

- Sei que é desumano, mas precisamos dar um jeito de identificá-lo até conseguirmos seus verdadeiros documentos. Então, damos um "apelido". Nada de pejorativo, entenderam, pequenos canibais? - Assentimos. - Excelente!

Caminhamos mais um pouco e paramos em um extenso corredor.

- Depois de examinados e operados, são trazidos para cá, onde serão evoluídos até receberem a alta.

Ergo a mão e ele pisca demoradamente, enquanto ergue a cabeça e abre os olhos em direção aos meus.

- As salas de descanso...?

- Salas de descanso... - Vira-se para apontar algum lugar, mas gira e dá de ombros. - Não temos aqui, não tem descanso.

Todos ficamos em silêncio e eu encolho os ombros, então ele cai na gargalhada.

- Ninguém é de ferro. Ficam no final do corredor, são dois. - Recompõe-se. - Desculpem, não sou muito sério quando não estou trabalhando. Bom, na verdade eu estou trabalhando, mas vocês entenderam. - Faz um gesto com a mão, deixando o assunto pra lá. - Enquanto estão limpando por aqui, vamos exercitar um pouco a capacidade de diagnóstico de vocês.

  Minha adrenalina disparou: meu primeiro questionário frente a frente com um paciente de verdade!

  - Esse é o Sr. Daves, 70 anos, aposentado como arquiteto. - Entramos na sala e ele começa.

***

  - Por que eu não me surpreendo com essa discussão que você teve com o Dr.? - Dani diz para mim, quando saímos do quarto.

  - Ainda não acredito que isso finalmente chegou! Foi ainda melhor do que eu imaginava! - Estou com uma cara de boba visível e que não me esforço em esconder.

  - Se no final da residência você não for pro trauma, eu não sei pra qual área vai. Olha esse brilho no olhar, que isso! - Rimos. - Finalmente parou de pensar no... - Põe a mão na boca. - Não pensa!

  Reviro os olhos, mas não pude evitar sentir um aperto no peito. Coloco a mão no local, foi realmente ruim.

  - Tá tudo bem? - Dani me olha preocupada e põe sua mão em minhas costas.

  - Sim, só foi um aperto aqui. - Digo com expressão de dor.

  - O que está sentindo?

  - Sabe aquela sensação de que algo ruim vai acontecer? - A olho e recebo uma careta e sinais pra espantar a negatividade.

  - Sai pra lá, coisa ruim! - Estrala os dedos dos lados do meu corpo. - Vem, vamos tomar uma água com açúcar, foi muita emoção pra você passar por esse questionamento agora.

  Fomos até um dos quartos de descanso e buscamos um pouco de água no filtro. Estamos rindo, falando sobre a "provinha" com o Zabdiel e ouvimos nossos pagers apitarem. Meu peito aperta de novo e olhamos os códigos: emergência do trauma por acidente de carro. Corremos para fora, eu ainda com o copo de água, e ficamos imóveis no fundo do corredor, observando a ambulância chegar e descer as duas macas.

  Numa delas, um garoto loiro, de cabelo jogado para o lado e muito sangue escorrendo de sua cabeça, na outra, um rapaz quase idêntico ao outro, exceto por duas coisas: o cabelo, que nesse era mais liso, e uma fratura exposta da tíbia, que o fazia gritar de dor.

  - Preciso de todos os internos aqui! (S/N), Daniela e Maya, venham comigo, tem mais um ferido chegando! Os demais, atendam os gêmeos!

  Concordo com a cabeça em vários movimentos rápidos em sequência, porém ainda em estado de choque, algo a mais está acontecendo, isso vai piorar!

  A terceira maca chegou, trazida na ambulância por Joel, que estava agitado demais e me deixando angustiada. O aglomerado em volta do paciente não me deixou ver quem era, então dei alguns passos, me mexendo pela primeira vez desde que saí do quarto, na tentativa de escutar as informações sobre o ferido. Então veio, Joel soltou a bomba que fez meu mundo cair:

  - Erick Brian Colón, tipo AB+, fraturou duas costelas, uma perfurou o pulmão. Cortes superficiais pelo corpo, ombro esquerdo deslocado, pupilas não estão normais: traumatismo craniano. Estava desacordado no local, sinais vitais instáveis, pulso bem fraco.

  Ele está aqui, bem na minha frente, é como se tudo estivesse desmoronando e eu estivesse assistindo, sentada na primeira fileira da plateia do show.

  - Já descobriram quem causou o acidente? - Zabdiel olhou Joel e o paramédico respirou fundo, tentando controlar sua frequência.

  - Ele causou. Está bêbado. - Disse decepcionado.

  Deixo o objeto com o líquido cair da minha mão.

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