Mau pressentimento

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  — Achei, achei. Não, não se preocupa, eu acho que ele nem percebeu que derrubou. — A bela jovem fala ao telefone enquanto caminha até o veículo. — O caso da Liz? Aquela menininha do acidente na serra do mar? Por que acha isso? — São as últimas coisas que ouço antes dela entrar no carro, buscar por quem a observa e, então,  fechar a porta. Por pouco ela não me viu, foi sorte ter conseguido esse lugar em meio a tanto movimento.

(S/N)
Expiro aliviada com as palavras de Dani, vindas do outro lado da linha. Despeço-me e encerro a ligação, mergulhando nos meus pensamentos enquanto encaro a tela do celular escurecendo até bloquear. "É realmente muita sorte que ela tenha achado a pasta no mesmo lugar, uns 10 minutos depois da gente ter passado por lá. Franzo as sobrancelhas. O que aconteceu com o universo hoje? Discussões, Erick acordando na minha casa, as pessoas sendo boas e não roubando qualquer coisa que acham no chão só por curiosidade... minha mente quase explodindo..." Sacudo a cabeça e saio dos meus pensamentos quando ouço passos se aproximando. Eu devia ter ido até o banheiro e não ficado parada no meio do corredor! Será que me escutaram?

— Doutora? Está tudo bem? — Angelina, a recepcionista, aparece bem do meu lado, sem completar a dobra que faria no corredor, e me pergunta com preocupação na voz. Sim, ela escutou.

— Tudo ótimo! — Decido exclamar propositalmente, já que ela ouviu toda a minha conversa, mas não sabe do que eu estava falando. Contanto que ninguém descubra o que está escrito naqueles papéis, podem evitar por trás das paredes à vontade. "Você não tem que explicar nada pra ninguém, (S/N)" minha consciência me lembra e eu faço um movimento rápido com as sobrancelhas, as erguendo e abaixando logo em seguida, antes de contornar a mulher e voltar ao balcão.

Sinto o olhar dela sobre mim enquanto caminho até lá, mas finjo não me importar e tento repetir aquela frase na minha cabeça o máximo possível. Limpo a garganta e me sento na cadeira, aproximando-a do computador, no qual reabro o arquivo com as instruções. Sem nenhum contato visual com ela, que retornou ao seu lugar logo depois de mim, pego a caneta e cravo meu olhar na folha do caderno, na qual volto a fazer minhas anotações, mais concentrada do que na primeira vez.

***

A tarde foi exaustiva: li todos o conteúdo, fiz anotações e adiantei o máximo que pude. Por volta das 20h, quando Dra. Laura já estava indo embora, ela me avisou o horário e disse que era hora de ir, porque se dependesse de mim, por não ter reparado em como o tempo voou, estaria lá até agora.

  Durante todo o tempo, eu me dediquei completamente e minha cabeça conseguiu focar em outra coisa que não fosse mais uma maluquice deste dia tão estranho que foi hoje. Não vi a Dani, não insisti para que o Chris me deixasse ver a Maya, não me incomodei em estar sob a observação frequente de Angelina... Só fui ao banheiro poucas vezes e me levantei para pegar água e suco. "Meu portfólio já está bem avançado e isso pode me dar mais tempo para adiantar outras coisas, como entrar em novos casos, ficar à disposição de outras especialidades e... Descansar, (S/N). Não vamos esquecer de descansar, ok? Como quer cuidar dos outros se não sabe nem cuidar de si mesma?" minha consciência me alerta outra vez, enquanto eu caminho pela comprida avenida, no caminho de volta para casa.

  O tempo virou e uma chuva fina está caindo do céu em uma trajetória curva, graças ao vento gelado que a empurra contra o rosto de quem segue a mesma direção que eu. Das poucas pessoas que movimentam as calçadas, eu sou a única que veste uma jaqueta, está encapuzada e encolhida com as mãos no bolso e a cabeça encolhida em busca de quentura, de modo que o zíper bate em meu queixo. As demais pessoas caminham apressadas, desviando agilmente com seus guarda-chuvas de todos os obstáculos aqui presentes.

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