9.

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Ele caminha apressado, mantendo o livro escondido sob a roupa. O sol já está razoavelmente perto do horizonte, o que significa que as chances de alguém o ver são grandes agora. Sua vontade é de disparar sobre a distância, mas sabe que, se alguém estiver pelo caminho, é melhor que o veja andando do que correndo. Correr normalmente significa que você fez algo errado.

Ele passa pela lateral do Templo, olhando rapidamente para a construção que mais parece uma grande lápide erguida sobre algum túmulo também gigantesco, e acelera para os fundos do Palácio, entrando pela janela do quarto, que por sorte dá diretamente para o bosque, e não para a movimentada praça central que deve estar apinhada de gente.

Considerando que o Palácio em que moram é um edifício simples, feito de pedra cinza, maciça e fria, entrar por uma janela, que na verdade é apenas uma abertura na pedra, é uma tarefa fácil, mesmo para alguém desacostumado a usar os músculos como ele.

O Palácio sempre fora a morada dos Sacerdotes e dos Auxiliadores, desde o início da cidade, alguns séculos atrás. Ninguém sabia dizer se aquele lugar enorme havia sido esculpido na pedra ou se era uma formação natural que, milagrosamente, se ergueu sozinha cheia de cômodos e corredores. Cogitava-se até mesmo que o Palácio havia sido construído pela própria Voz, e que, por esse motivo, era impossível encontrar qualquer traço de lapidação humana sobre a rocha. Durante a infância, ele tinha o costume de percorrer as mãos pelas paredes para investigar se a história era verdade. Logo que os Auxiliadores descobriram seu objetivo, porém, o repreenderam duramente. Colocar a Voz à prova era um crime inaceitável, e desde então jamais havia vasculhado as paredes novamente.

Seja lá qual fosse a verdadeira origem daquele lugar, havia uma aura de mistério que tornava a morada dos homens sagrados ainda mais sagrada. E, exatamente por essa razão, entrar pela janela escondendo um objeto nas roupas parecia não ser algo muito bom, embora fosse sua única opção.

Talvez, quando o momento disponibilizasse apenas uma opção, não fosse errado infringir algumas normas. Não era o que a Voz fazia? Sempre diziam que ela tinha amor incondicional e estava pronta a perdoar. Porém, caso alguém cometesse algum Crime Imperdoável, ela não teria opção a não ser punir a pessoa.

Se mesmo a Voz, que detinha todos os poderes, esquecia suas próprias normas quando não tinha escolha, por que ele deveria se culpar por isso? Que escolha tinha ele, além de entrar pela janela?

Um calafrio percorre sua espinha ao pensar que a Voz talvez não tivesse escolha. Pensar essas coisas certamente deve ser uma heresia.

Mal havia escondido o livro numa fresta entre a cabeceira sólida da cama e a parede quando ouve batidas na porta.

- Entre. – diz ele, tentando disfarçar a respiração acelerada.

- Com licença, senhor Sacerdote.

A porta é aberta vagarosamente, dando espaço para uma cabeça velha e praticamente careca, não fossem alguns fios grisalhos que teimavam em brotar de forma irregular.

Logo o velho inteiro aparece.

- Desculpe-me se o interrompi, senhor Sacerdote. Eu venho apenas para lembrá-lo que amanhã haverá outra Audição, e verificar se o senhor precisa de alguma coisa.

- Vero, já te disse várias vezes que não precisa me chamar de senhor Sacerdote, pode continuar me chamando pelo meu nome.

- Desculpe-me, senhor.

- Vero!

- Desculpe-me, Lúcio.

- Assim está melhor.

Vero seria seu melhor amigo, se pudesse considerá-lo assim. É o seu Auxiliador pessoal, praticamente um servo particular, responsável por organizar sua rotina e fornecer qualquer ajuda que precise. Mas, com tanta idade e tanta gentileza, o Sacerdote não consegue tratá-lo por menos que um amigo. Há algum tipo de conexão entre eles, algo em seus silêncios constrangidos que foge às palavras refinadas do Palácio.

De todos os Auxiliadores, ele parece ser o mais sem jeito para o negócio. Tem algumas atitudes estranhas às vezes, e não consegue se misturar bem com os demais. Parece, na verdade, viver num universo à parte. Um universo que interessa de modo especial ao Sacerdote.

Ele sempre sentiu que, justamente por não ser um tipo tão sociável, Vero é um dos poucos a quem poderia confiar até seus segredos. Por esse mesmo motivo, Vero é o único que tem permissão para chamar o Sacerdote por seu verdadeiro nome.

- Obrigado por me lembrar, eu havia esquecido completamente...

A Audição seria no dia seguinte. Isso significa que não poderia encontrar o garoto no horário em que ele havia sugerido.

O pensamento o aborrece por alguns instantes, mas logo cede à sua indiferença habitual. A Audição certamente é mais importante do que encontrar um garoto estranho e perturbado.

- Senhor Sacerdote...

- Vero, o que eu te disse?

- Lúcio, – corrige o velho, com sua voz fraca e doce, mantendo os olhos nos próprios pés e brincando com os dedos das mãos nervosamente - eu sei que não devo me meter em seus assuntos particulares, mas, apenas por curiosidade, eu não o vi durante a tarde toda, e pensei se haveria algo que o senhor queira me contar.

- Eu estava caminhando. – responde com rispidez.

Há uma pausa desconcertante.

- Desde a última Audição, não temos nos falado muito... E, como seu Auxiliador pessoal, eu sinto que deveria te dar mais apoio neste momento. As primeiras Audições podem ser um pouco estressantes para jovens Sacerdotes como o senhor. É raro que alguém seja iniciado em sua idade, e, com o devido respeito, creio que seu pai não esteja lhe oferecendo o suporte que deveria.

O Sacerdote solta um grunhido de desconforto diante da intrusão do outro. Seria bastante difícil mentir para Vero, e, sinceramente, ele jamais desejou mentir para aquele idoso tão amável. Seria pior que qualquer imoralidade cometida diante da Voz. Além do mais, talvez fosse bom conversar com alguém. Talvez sua alma se fortificasse e tudo pudesse voltar ao normal se tivesse alguém para quem se confessar.

- Na verdade, Vero, estou um pouco estressado, sim...

O Auxiliador se aproxima paternalmente, fechando a porta atrás de si. Senta-se sobre a cama e gesticula para que o jovem sente a seu lado.

- Conte-me tudo, e não tenha medo. Nada do que disser sairá por esta porta.    

    

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