O que fazer no dia seguinte?
A Audição tomaria a tarde toda, e seria impossível estar no local e hora marcados pelo garoto estranho.
Pensando nisso, ele apanha o livro que havia escondido, confere se a porta está trancada, e senta sobre a cama, segurando com cuidado o objeto de couro. O livro é razoavelmente pesado e cheira a coisas muito antigas. Na verdade, cheira quase exatamente ao interior do Templo, o que o deixa mais nervoso ainda ao manuseá-lo.
Outra Audição. Será que conseguirá ouvir a Voz facilmente, ou será tão difícil quanto da última vez?
Ele suspira, desanimado, e abre a capa do livro. Encontra uma única palavra, estampada em preto:
"POEMAS".
A palavra desconhecida salta a seus olhos durante algum tempo, escrita numa caligrafia impecavelmente reta e equilibrada, quase como se não fosse um ser humano que a tivesse traçado. Nem mesmo os documentos sagrados tinham traços tão perfeitos e alinhados.
Algumas páginas viradas, e sua atenção se volta totalmente para o livro.
Palavras... A isso ele está acostumado, sendo um dos poucos privilegiados que aprendeu a ler e escrever. Apenas os Sacerdotes e os Auxiliadores aprendem, já que o restante não precisa saber ler muito bem para realizar suas tarefas. Em geral, os homens comuns sabem escrever o básico, como o próprio nome, e algumas coisas relacionadas aos seus trabalhos, mas jamais seriam capazes de ler tantas palavras quanto as que ele tem agora à sua frente.
As palavras ele já conhece, mas jamais as tinha visto escritas de uma forma tão confusa, todas ajeitadas em linhas que não vão até o fim da folha, como é habitual nos documentos do Palácio.
Ele começa a ler, a confusão já o tomando logo no início. Aquelas palavras não parecem fazer sentido algum, e as linhas não se complementam, como num documento, mas parecem destoar, cada uma falando de algo novo e totalmente desconexo com a anterior. Ele lê até o fim, mais de uma vez, tentando encontrar um sentido em toda aquela desordem:
Ele ergue o rosto, olhando pela janela por onde tinha entrado algum tempo atrás, sem conseguir entender o que tinha acabado de ler.Algo está errado. As palavras foram criadas pela Voz para serem úteis e claras. Por que então alguém iria escrever algo assim, tão confuso e difícil de se entender? Que tipo de comunicação poderia vir de um texto que usava as palavras de modo diferente do que elas deveriam ser usadas? Como poderia alguém ter um olhar como um girassol, se um girassol era uma planta, e uma planta jamais poderia ser um olhar? As palavras pareciam ter saído da boca de um louco delirante.
Ele lembra o que o outro havia dito: que o livro não servia para nada. Pelo menos nisso ele estava certo, nunca havia visto maior desperdício de papel.
Passa os olhos novamente pelas palavras, sentindo um incômodo esquisito atrás da nuca. Por alguma razão, aquelas palavras quase indecifráveis despertam uma sensação nova, como se pudesse realmente sentir que seus olhos eram girassóis... Abertos. Abertos como estavam no momento em que olhou para o interior do Templo. Abertos como os olhos do garoto que o encarava de volta maliciosamente. Olhos abertos contra o sol. Olhos que viam mais do que deveriam ver.
Ele suspira, fechando o livro e o colocando de volta no seu esconderijo. Há coisas mais importantes para se preocupar do que perder tempo com sensações bizarras e impossíveis como aquela. Sua vontade é de encontrar aquele garoto e rir da cara dele, rir do presente que ele havia dado, rir de sua tolice ao dar-lhe um livro inútil, que provavelmente nem o próprio garoto poderia ler porque um mero trabalhador jamais seria capaz de ler algo como...
Ou seria ele capaz?
Afinal, que sentido teria dar um presente se ele não soubesse nem mesmo do que se tratava? Seria um milagre se aquele garoto, apenas mais um trabalhador comum, fosse capaz de ler algo difícil até mesmo para o Sacerdote.
Mas talvez o garoto, por algum milagre, soubesse ler. E, se ele soubesse, seria capaz de ler um bilhete seu, avisando que não poderia comparecer na hora marcada por causa da Audição.
Animado com a ideia, ele arranca um pedaço de uma das últimas páginas do livro, que estava em branco, e escreve um recado com a caligrafia mais clara que consegue, com medo de que o outro talvez não seja muito bom em leitura:
Aproveitando a escuridão da noite que se aproxima, ele passa novamente pela janela e corre na direção do bosque, deixando o bilhete enfiado em um galho fino, de modo que possa ser facilmente visto.
Olá, galera! O que estão achando de Lúcio e sua vida nada simples de Sacerdote?? O que vai acontecer na próxima Audição? Será que o garoto vai encontrar seu bilhete? Sobre o que vão conversar??
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Nos vemos em breve!
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Dantálion [COMPLETO]
Science Fiction[DISTOPIA GAY] Lúcio está prestes a dar o passo mais importante de sua vida: assumir o lugar de seu pai como Sacerdote. Dias antes de sua iniciação, porém, as coisas começam a desandar... Dúvidas e medos de infância reaparecem. A insegurança em sua...