Todo o sangue de seu corpo é drenado enquanto caminha pelos corredores do Palácio, já vestido em seu traje cerimonial. Cada passo se torna pesado, e ele luta contra os músculos para continuar em movimento.
Ao sair à luz do sol, vê a multidão já reunida. A maioria dos Auxiliadores está lá também, lhe esperando. O primeiro olhar que capta é o de Anton, que o encara com seriedade em sua frieza azul.
Todos ficam em silêncio quando o veem chegar.
Anton se aproxima do Púlpito, sua túnica escura se destacando contra a luz da manhã. Vero estava certo, só poderia ser um julgamento.
Em pânico, o Sacerdote olha para os lados, tentando encontrar algum sinal de Dantálion.
- Como Auxiliador da Justiça, - inicia Anton, sua voz grave e imponente ordenando o silêncio - eu convoco um julgamento público para Maura, do grupo da agricultura, acusada de cometer um Crime Imperdoável.
Do meio da multidão surge um Auxiliador empurrando uma mulher à sua frente. Ela está suja e desarrumada, e é empurrada com brutalidade, as mãos magras amarradas à frente do corpo, como se pudessem representar qualquer ameaça.
Por um breve instante, o Sacerdote sente alívio por ver que a acusada não é um rosto familiar, e o Crime provavelmente nada tem a ver com a Ordem dos Surdos. Logo em seguida, porém, ele cora, envergonhado pelo pensamento terrível que acabava de ter. Como poderia sentir alívio numa situação destas?
Quando a mulher já está sobre o palanque, Anton continua a falar:
- Maura, do grupo da agricultura, é acusada de ocultar um imperfeito. Foi flagrada hoje pela manhã carregando o corpo de uma criança defeituosa, na tentativa de enterrá-la, após ter morrido em decorrência de suas deficiências.
O Sacerdote olha fixamente para o rosto da mulher. Ela não aparenta ser muito velha, embora tenha sinais de trabalho por todo o corpo. Seu cabelo é seco e de uma tonalidade marrom, como a que têm as folhas antes de se tornarem pó.
A mulher o olha de volta, seus olhos castanhos suplicando por misericórdia, o rosto marcado por uma expressão de dor e desespero.
Ele tenta engolir o líquido espesso que começa a subir por sua garganta.
- O que você tem a dizer em sua defesa? – pergunta Anton, quase com um sorriso nos lábios.
A mulher, aos prantos, mal pode ser ouvida pelo Sacerdote.
- Ele era meu filho... – diz, sua voz sendo engolida por um soluço.
Ela começa então a chorar descontroladamente, seu corpo sacudido por tremores. A mulher lança um olhar vermelho e dolorido para o Sacerdote, implorando.
Lúcio fecha os olhos com força, tentando estabilizar a respiração.
Quando os abre novamente, estão todos olhando para ele.
- Senhor Sacerdote, - continua Anton – um dos Crimes Imperdoáveis é ocultar um imperfeito. O filho dessa mulher deveria ter sido entregue aos Auxiliadores e eliminado assim que sua imperfeição fosse confirmada. A própria Voz nos alertou sobre o perigo de mantermos entre nós pessoas nessas condições. Todos sabemos que, quando uma criança nasce imperfeita, isso significa que espíritos malignos a dominaram, ou dominaram a seus pais. Segundo nossas leis, Maura deverá ser condenada à morte.
Um tremor violento transpassa o corpo do Sacerdote ao finalmente entender qual é sua função no julgamento.
- A Voz confirma o veredito?
Ele olha para Anton, e tenta falar baixo o suficiente para que só ele escute:
- Não há outra opção? A criança está morta, então...
- As leis foram criadas pela Voz. – interrompe com grosseria o Auxiliador – Não devemos deixar o mal habitar entre nós, ou em breve seremos todos corrompidos por ele. Não concorda, senhor Sacerdote?
A última pergunta é dita em tom de ameaça.
Ele treme incontrolavelmente, as mãos suando, sem saber o que fazer. Milhares de pensamentos correm por sua mente enquanto mantém o olhar fixo no rosto desafiador de Anton.
- E então? A Voz confirma o veredito?
Se disser que sim, a mulher morre. Se disser que não, será alvo de desconfiança por parte dos Auxiliadores, assim como tinha acontecido com seu avô. Negar a punição a um criminoso imperdoável seria como atestar sua desobediência ao Palácio, o que poderia lhe custar muito caro.
Ele olha novamente para a mulher, pensando em Dantálion, pensando em cada um dos Surdos naquela sala, pensando em si mesmo e pesando a vida de cada um deles em seus dedos. Uma vida por muitas. Seria uma troca justa?
Ele fecha os olhos e ergue a mão direita.
- Sim.
A mulher é então mais uma vez empurrada pelo Auxiliador que a trouxe. Ele a faz ajoelhar sob a lâmina da guilhotina enquanto os gritos agudos disparam pela cidade. Todos a ouvem. Ninguém ousa mover um músculo.
O Sacerdote abre os olhos uma última vez, seu olhar se fixando na fina extremidade da lâmina prateada apontando diretamente para o pescoço da mulher que berra, implorando por misericórdia.
Com o corpo e a mente entorpecidos, ele abaixa a mão em um movimento rápido.
Tão rápido quanto o deslizar da lâmina.
O cheiro de sangue preenche o ar, impregnando-o, grudando como uma seiva espessa em suas narinas, em sua garganta, em seu peito, como se, ao respirar o sangue daquela mulher, fosse ele quem morresse por dentro. Sua alma, se é que ainda tinha uma, se tinge de vermelho. Não o vermelho belo das rosas ou dos lábios de pessoas vivas, e sim o vermelho enegrecido de sangue coagulado, morto, derramado, a mesma cor repugnante que agora tingia o chão de granito azul sob seus pés.
Seu estômago revira, e, por alguns minutos que parecem se arrastar por séculos, ele deseja que o sangue secando no chão fosse o seu.
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Dantálion [COMPLETO]
Science Fiction[DISTOPIA GAY] Lúcio está prestes a dar o passo mais importante de sua vida: assumir o lugar de seu pai como Sacerdote. Dias antes de sua iniciação, porém, as coisas começam a desandar... Dúvidas e medos de infância reaparecem. A insegurança em sua...