Os sons que o Sacerdote conhece são sempre os mesmos: os da natureza, como pássaros, corredeiras, vento, chuva, e os humanos, como o rolar das carroças, os passos, as marteladas, as vozes, o som do trabalho sendo feito...
Mas nada podia tê-lo preparado para aquilo.
Era como se todos os pássaros do mundo tivessem se juntado para cantar, cada um com um canto diferente, que se uniam para formar algo inconcebivelmente complexo.
Os sons eram produzidos por coisas desconhecidas, nem humanas, nem da natureza.
Havia sons de coisas batendo, raspando, soprando. E um som mais alto que todos, rouco, rasgado, como se o vento ou a voz de uma pessoa pudessem ser condensados e comprimidos até atingir aquele tom, inacreditavelmente intenso.
E, para seu novo espanto, do meio de toda aquela confusão de sons surge uma voz humana. Uma voz de mulher, que não falava, mas parecia cantar como se fosse um pássaro. Eram palavras indecifráveis que ela dizia, demorando-se em algumas vogais e acelerando em outras, competindo com o ritmo estranho dos outros sons, complementando-os, criando um único som repetitivo, sedutor, que parecia tomar o controle de sua mente e de seu corpo.
Confuso, ele olha para Dantálion, buscando alguma explicação.
O garoto está de olhos fechados, batendo um dos pés no chão no mesmo ritmo dos sons, um sorriso iluminando seu rosto. Ele então começa a mover os lábios, murmurando os mesmos sons que a voz feminina parecia dizer. Sons que, para o Sacerdote, não significavam nada.
Estarrecido, ele apenas observa, imaginando por um momento se não teria ficado louco.
Após um tempo, porém, o som para. Dantálion olha em sua direção.
- Isso é música. Mais especificamente, jazz.
O Sacerdote permanece imóvel. Muitas perguntas passam por sua mente.
- Por que eu não entendo absolutamente nada do que você estava... - ele gesticula em direção à própria boca, sem saber como descrever.
- Cantando?
- Só pássaros cantam. Eu estou perguntando sobre aquele jeito estranho como você estava...
- Eu estava cantando. – interrompe – Pessoas também conseguem cantar. Mas não me tome como exemplo, eu sou péssimo nisso. E, respondendo à sua pergunta, você não entendeu as palavras porque elas eram em outra língua.
- Como assim outra língua? As pessoas falam todas do mesmo jeito.
- Na verdade, não. Existem muitas línguas, apesar de a maior parte delas estar extinta agora. De qualquer modo, a língua que falamos é só mais uma entre várias.
- E você por acaso sabe falar essa outra língua? – questiona, o descrédito audível em sua voz.
- Um pouco.
- Prove.
Dantálion se irrita.
- Você não entenderia uma palavra, como é que eu poderia te provar?! Você ouviu a música! Continue duvidando de mim o quanto quiser, eu não me importo com o que você acredita ou deixa de acreditar. Você consegue acreditar que o Universo é do tamanho de uma cidade, mas duvida que existam outras línguas! As provas estão todas na sua frente, você as viu e ouviu. Eu não tenho obrigação nenhuma de te mostrar mais nada.
O Sacerdote olha para o dispositivo branco que o garoto segura nas mãos, ainda emanando uma luminosidade diferente de qualquer chama que ele tenha visto.
Dantálion está certo. Ele pode não entender como aquilo funciona, mas não pode negar a realidade que está diante de seus olhos. Suas únicas opções são duvidar do garoto e continuar acreditando no que lhe ensinaram, ou dar-lhe um voto de confiança e tentar entender as coisas confusas que ele diz. Os Auxiliadores jamais haviam falado sobre música, poemas, livros, e tantos outros objetos que Dantálion lhe mostrava e explicava.
- Desculpe. – diz, apertando os lábios – É difícil ver tantas coisas novas de uma vez, mas eu quero acreditar em você, Dantálion. Me ajude a compreender.
O garoto estreita os olhos, analisando sua expressão.
- Você está pedindo minha ajuda, Sacerdote?
- Estou.
Dantálion sorri de modo mais ameaçador que amigável, estendendo a mão pálida.
- Então há mais uma regra: se quiser mesmo minha ajuda, você terá que me obedecer, agindo como e quando eu mandar. Caso contrário, estará colocando nossas vidas em perigo. Você está disposto a confiar em mim, Sacerdote?
Lúcio observa fixamente os dedos finos que apontam em sua direção, iluminados pelas chamas dançantes da fogueira. Como Sacerdote, qualquer um que dê ordens a ele estaria dando ordens à cidade inteira. Ele ergue o olhar para o rosto do garoto. Seus olhos, apesar de tão escuros, transparecem uma sinceridade que nunca havia percebido no olhar de nenhuma outra pessoa.
Ele estende a própria mão, apertando com força os dedos frios de Dantálion.
O que fazer quando a realidade bate de frente com as crenças que você deveria proteger? O que será do pobre Lúcio depois desse tapa na cara?
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Dantálion [COMPLETO]
Science Fiction[DISTOPIA GAY] Lúcio está prestes a dar o passo mais importante de sua vida: assumir o lugar de seu pai como Sacerdote. Dias antes de sua iniciação, porém, as coisas começam a desandar... Dúvidas e medos de infância reaparecem. A insegurança em sua...