Ele se vê diante de um precipício íngreme, o céu totalmente cinza, e o chão completamente morto. Em transe, ele se aproxima do abismo e olha para baixo, enxergando nada além de trevas.
Como um trovão rasgando o céu, um grito cortante e doloroso se arrasta pelas paredes do abismo, tornando-se cada vez mais áspero. O grito sobe pela rocha, em trincos, alongando-se como uma aranha convulsiva.
Um pássaro negro surge das profundezas, suas asas gigantescas levantando a poeira do chão enquanto se agitam. A ave solta um novo grito lacerante, que queima em seus ouvidos.
Ele tenta correr, mas o pássaro dá um rasante em sua direção, cravando as garras em suas costas, apertando.
Ele grita por socorro, seu chamado ecoando pela paisagem deserta, sem resposta.
O enorme corvo é maior que ele, e tem as garras atravessadas por seu corpo, escorrendo com sangue. Ele sabe que vai morrer. Não tem como sobreviver àquelas perfurações. Sente o coração pulsar dolorosamente ao redor das unhas negras. A vida se esvaindo de seu interior. Vazando.
Sem esperança alguma de se salvar, ele olha para o pássaro, que o encara de volta com dois olhos escuros como a noite.
Aqueles olhos...
Inconfundíveis.
A ave alça voo repentinamente, levando-o preso em suas unhas, repuxando seus órgãos internos. Sem saber como pedir por misericórdia, ele grita as primeiras palavras que vêm à sua mente:
- Por favor, Dantálion!
Os olhos negros do corvo se estreitam. As garras o soltam direto para o abismo, onde agora arde um fogo insuportável.
Ele cai em direção às chamas dançantes, que assumem a forma de rostos de milhares de pessoas, e o rosto faminto de Anton assoma entre as labaredas, com os dentes afiados para devorá-lo.
Em pânico, ele grita uma última vez, o grito agudo dilacerando seu peito quando os dentes de Anton finalmente se fecham sobre ele:
- Dantálion!
Ele se levanta bruscamente na cama, ofegante.
Todo seu corpo está coberto por uma camada espessa de suor, o coração batendo freneticamente, os dedos tremendo.
Pela claridade que entra pela janela, já deve ser quase de manhã.
Lúcio tenta se deitar novamente, mas o terror do pesadelo retorna a cada vez que fecha os olhos.
Sem escolha, ele pega o livro escondido na lateral da cama, e abre em uma página qualquer:
Ótima distração, pensa, erguendo-se com dificuldade da cama.Graças a Dantálion, ele agora era capaz de ironizar quase tudo, até mesmo o poema triste que havia acabado de ler, e que imprimia um sentimento fatalista em seu coração. Como podia sua vida ter mudado tanto em um tempo tão curto? Agora tudo parecia mais triste, mais pesado, mais inútil.
Agora a morte, que antes era somente um fato futuro sem importância, parecia estar já pairando sobre ele. Se fosse um Sacerdote bondoso, os Auxiliadores podiam matá-lo. Se fosse severo, os Surdos podiam matá-lo. E o que quer que fosse, um dia seria morto, provavelmente por ordem de Dantálion. Já havia vivido o bastante para ter certeza de que não morreria de velhice ou doença. Nenhum Sacerdote morre de velhice ou doença. De certa forma, morrer cedo parecia ser uma opção razoável. Talvez não tivesse que sofrer muito. Talvez qualquer acidente ou engano o pudesse poupar da guerra que estava por vir. Talvez Dantálion pudesse cumprir sua ameaça de fazer ele mesmo, e assim livrá-lo do futuro.
Ele ri com ironia, imaginando de que forma Dantálion o mataria, e se seria rápido e certeiro, ou, o que era mais provável, se seria suave e maléfico, como sempre costumava ser.
Ao lavar o rosto, ele se olha no espelho. Vendo-se pálido e com marcas profundas sob os olhos, enxerga em si mesmo o rosto de Dantálion, suave e maléfico, sorrindo com debilidade cruel.
Ele sacode a cabeça, tentando fazer a imagem ir embora, mas ela continua lá quando abre os olhos.
Dantálion era como uma doença: havia o contagiado. Agora ele pensava como ele, falava como ele, parecia-se com ele. E sofria como ele.
A que conclusão chegar depois dos eventos da última noite? Não havia dúvidas de que o garoto era perturbado, agindo como se fosse seu melhor amigo de infância em alguns momentos para, logo em seguida, agredi-lo sem pensar duas vezes.
A verdade é que Dantálion, por debaixo de sua máscara de força e invulnerabilidade, devia esconder alguma ferida muito grave.
Ninguém é duro daquele jeito sem ter passado por momentos difíceis.
Suas divagações na frente do espelho são interrompidas bruscamente quando Vero aparece gritando:
- Senhor Sacerdote! Convocação urgente! O senhor precisa se apressar!
Ele vira o rosto na direção do Auxiliador, ainda atordoado.
- O que houve, Vero? Por que tanta pressa de repente?
- Não tenho certeza, senhor, mas creio que é um julgamento, e o senhor está sendo solicitado neste exato segundo.
AVISO: o próximo capítulo contém cenas que podem causar desconforto a públicos mais sensíveis.
Não digam que eu não avisei!
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Dantálion [COMPLETO]
Science Fiction[DISTOPIA GAY] Lúcio está prestes a dar o passo mais importante de sua vida: assumir o lugar de seu pai como Sacerdote. Dias antes de sua iniciação, porém, as coisas começam a desandar... Dúvidas e medos de infância reaparecem. A insegurança em sua...