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Ele aguarda sozinho, sentado à mesa em que costumavam celebrar os banquetes, agora vazia.

O Palácio está morto, sem uma alma viva para caminhar por seus corredores.

Sem ter permissão para ir à cidade, ele apenas imagina a proporção da comoção geral.

O que seu povo pensaria dele agora? O odiariam mais ainda, ou finalmente compreenderiam suas atitudes?

Ele suspira. Seja lá o que pensam, não importa mais.

O seu destino não pertence a si mesmo, e sua mente anda tão perturbada que, independentemente do que aconteça, sua vida dali em diante será apenas miséria e sofrimento, se é que continuará vivo.

Em fila, todos os Surdos entram, ainda vestidos com suas túnicas e máscaras negras, sentando-se nas cadeiras à sua frente.

- Lúcio, - diz seu novo líder, provavelmente o mesmo que ouviu toda sua narrativa no porão – Nós debatemos o seu caso e repassamos sua história várias vezes, tentando decidir que medida tomar.

O Surdo suspira.

- Concordamos que sua declaração é possivelmente verdadeira. Considerando a quantidade de informações que você tinha a nosso respeito, é provável que Iago tenha dividido seus planos com você, o que o inocentaria.

"Porém, as únicas testemunhas que poderiam comprovar sua história seriam Iago e Vero, e ambos estão mortos, e não resta nenhuma evidência de que seu relato seja real. Além disso, você é responsável pela morte de quatro pessoas, e cúmplice no assassinato de mais uma.

Reconhecemos que suas atitudes como Sacerdote poderiam realmente ter sido arquitetadas por Iago para tornar a revolução possível, porém, como já disse, apenas o testemunho dele poderia comprovar sua veracidade."

Ele coloca uma das mãos sobre o ombro de Lúcio.

- Todas as leis foram revogadas, e, portanto, não temos ainda instrumentos formais para punição. Os Auxiliadores deverão ser questionados, e então decidiremos quais deles estão aptos a se encaixarem em nossa sociedade e quais devem ser afastados. Além disso, as novas leis e o novo governante deverão ser decididos em votação com todo o povo, o que certamente demorará algumas semanas. Enquanto isso, nós seremos os líderes temporários da cidade, o que nos dá a obrigação de decidir o que será feito de você.

Outro Surdo se levanta, com ar grave.

- Lúcio, espero que esteja ciente de que o povo está reunido lá fora pedindo para que você seja executado ainda hoje.

Ele olha para as próprias mãos, cobertas de cortes e bandagens.

- Façam o que quiserem, eu não me importo. Se quiserem me levar até a guilhotina, me levem. Eu não vou lutar com vocês.

Os Surdos trocam olhares.

- Lúcio... – retoma o mesmo que estava falando no início – Nós fizemos uma votação e decidimos não condená-lo à pena de morte, já que, se sua história for verdadeira, isso seria um crime terrível que estaríamos cometendo contra um aliado. Mas temos que considerar a vontade do povo também... Por isso, decidimos te dar uma escolha.

- Que escolha?

- Decidimos que, em vinte e quatro horas, você será sentenciado à execução. Porém, antes desse tempo, você pode sair da cidade. A lei que protegia as fronteiras não vale mais, e qualquer um pode entrar e sair agora. Se você sair, não poderemos ir atrás de você para matá-lo. Mas você também não poderá retornar, nunca mais, ou a pena será executada.

Lúcio mantém o rosto baixo.

Por mais que a ideia de morrer e encerrar seu sofrimento o seduzisse, não poderia simplesmente se entregar. Morrer de forma humilhante diante de seu povo era um jeito ruim demais de partir. Ficar seria o mesmo que cometer suicídio, e, por algum motivo, ele sente que ainda tem a obrigação de cumprir seu juramento.

O juramento a Dantálion o manteria vivo. Pelo menos por enquanto.

- Tudo bem, eu vou.

- Buer? - rompe uma voz fina, provavelmente a mesma que havia feito tantas indagações na última reunião.

- O que foi?

A silhueta negra de onde havia surgido a voz se levanta, colocando as mãos sobre a mesa.

- Eu gostaria de ir com ele.

Todos os rostos se voltam em sua direção.

Buer leva uma mão ao pescoço, coçando-o.

- Considerando que as antigas leis foram revogadas, todos vocês têm a permissão de fazerem o que quiserem. Se quiser partir, fique à vontade. Você poderá voltar a qualquer momento.

Todos se levantam.

- Lúcio, você tem vinte e quatro horas para pegar tudo que julgar necessário. Pode contar conosco para qualquer suprimento que precisar.

Assim que os demais saem, Lúcio e o Surdo que havia decidido ir com ele caminham até a varanda superior do Palácio, observando o sol que nasce atrás das árvores do bosque.

- Por que é que você quer vir comigo? - pergunta, voltando-se para trás.

- Porque não gosto dessa cidade. – responde a voz bestial da máscara – Passei minha vida toda esperando o momento em que poderia finalmente sair daqui, e agora tenho a chance. Além do mais, não acredito que as coisas vão ficar boas daqui pra frente. Você devia ver a bagunça que está lá fora, cada um querendo algo diferente. Se quer saber, eu acho que as coisas vão ficar bem ruins.

- Então... Você acredita em mim e em tudo que eu disse? Não acha mesmo que eu tenha feito tudo isso para ganhar mais poder?

- Eu acredito em você, Lúcio. Eu sempre te observei de longe, e acredito em cada palavra que você diz.

- Por favor, não me chame por esse nome.

- Por que não?

- Porque as duas únicas pessoas que me chamavam por esse nome estão mortas, e eram muito importantes.

- Será que poderei te chamar de Lúcio quando eu for importante para você?

A sinceridade da pergunta o impede de sentir qualquer irritação. Ele apenas olha demoradamente para a figura escondida, que lhe desperta a mesma sensação incômoda que Iago despertou nele assim que se conheceram.

A saudade perfura seu coração.

- Qual o seu nome? – ele pergunta, uma esperança trêmula o tomando.

- Meu nome é Lenora. – ela diz, retirando a máscara e o capuz para revelar seus longos cabelos castanhos e seus olhos completamente pretos – Mas pode me chamar de Kali, se preferir.

Ela estende a mão, que ele aperta com firmeza.    

*Lenora é o nome da personagem do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, que representa a lembrança constante da morte

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*Lenora é o nome da personagem do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, que representa a lembrança constante da morte. Por ter características físicas e emocionais parecidas com Iago, ela será a lembrança constante que irá atormentar Lúcio.

Dantálion [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora