O vento balança as hastes verdes, espalhando o cheiro de pólen pelo campo.
Ele é outra vez uma criança, correndo, brincando, sem nenhum sinal das feridas em seu coração.
Percorre os campos dourados, tão rápido que seus pés mal tocam o chão. A sensação de liberdade é a melhor que já sentiu em toda sua vida.
Um incômodo, porém, o faz parar, com a sensação de que está se esquecendo de algo.
O vento leve se transforma em um sopro de tempestade se aproximando, o céu subitamente tomado de uma cor cinza, o mundo prestes a desabar em um dilúvio.
Ele avista ao longe uma cabana de madeira, coberta por uma sombra que parece brotar do solo. Corre na direção da cabana enquanto as primeiras gotas grossas estalam no chão.
Ao entrar, toda a claridade desaparece, e só consegue enxergar através de tímidos raios de luz que passam pelas frestas na madeira, quase apagados.
O interior tem uma mistura de cheiros curiosa.
Ele caminha, farejando o ar, tentando se lembrar do que esqueceu.
Recorda o nome de um dos cheiros: bolor. E logo depois identifica o segundo: sangue.
Ao lembrar a palavra, olha ao redor, assustado.
Por que a cabana cheira a sangue?
Só então avista a figura sentada no chão.
É um menino, fraco, abatido, pequeno em todas as proporções. Ele se encolhe a um canto, o rosto escondido, sacudindo o corpo repetidamente para frente e para trás, alheio à sua presença.
- Olá, quem é você? - pergunta Lúcio, sua voz rastejando de maneira estranha pelas paredes.
Ele não responde, apenas continua a se balançar.
Lúcio se aproxima, colocando a mão em seu ombro.
- Está tudo bem, você pode confiar em mim.
O menino lentamente se volta para vê-lo.
Lúcio retira a mão e salta para trás, aterrorizado com o rosto que o encara, com dois buracos vazios no lugar onde deveriam estar seus olhos.
Ele tenta correr, desesperado para sair daquele lugar, mas não consegue.
A tempestade lá fora engole o mundo todo em uma espessa torrente de água fria, tão sólida quanto pedra.
O menino se ergue de seu canto, caminhando para ele, sem desviar o rosto dilacerado, como um espírito de uma criança morta.
- Fique longe de mim! - Lúcio grita, tropeçando sobre os próprios pés e batendo o queixo numa das tábuas.
A criança pende a cabeça para o lado, pensativa.
- Qual o problema, Lúcio? Você não aguenta me ver sofrer?
A voz que sai de sua boca é a voz de Dantálion.
- Você não aguenta assistir em silêncio? Não aguenta ver enquanto ele me corta e arranca meus olhos? Você consegue ficar calado? Você me promete que vai ficar calado?
Em pânico, Lúcio grita, arranhando a madeira da parede na tentativa de abrir um caminho, suas unhas se quebrando e vertendo sangue por suas mãos e braços.
- Não se preocupe, Lúcio. - continua a falar o menino em sua voz medonha - Eles estão todos mortos.
O garoto aponta um dedo magro na direção oposta, onde centenas de corpos empilhados apodrecem, todos vestidos em túnicas pretas, com as cabeças cortadas, vertendo sangue pelo assoalho.
- Não se preocupe, eles estão todos mortos, e logo nós nos juntaremos a eles, e ficaremos juntos por toda a eternidade, como você prometeu. Você quer ficar comigo para sempre, Lúcio? Você acha que aguenta?
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Dantálion [COMPLETO]
Science Fiction[DISTOPIA GAY] Lúcio está prestes a dar o passo mais importante de sua vida: assumir o lugar de seu pai como Sacerdote. Dias antes de sua iniciação, porém, as coisas começam a desandar... Dúvidas e medos de infância reaparecem. A insegurança em sua...