Permanece deitado na cama. Tinha dito a Vero que estava se sentindo indisposto e por isso queria passar o dia no quarto. De certa forma, era verdade.
Acostumado à sua rotina meticulosa, jamais havia passado a noite toda acordado. Estava exausto. E com um péssimo humor.
Num instante, toda sua admiração por Dantálion desapareceu. Tomado por raiva e rancor, havia decidido encerrar essa história e viver sua vida de Sacerdote em paz. Nunca mais entraria na floresta, nem procuraria o garoto. Poderia fingir que nada daquilo havia acontecido: nada de olhar para o interior do Templo, nada de subir em árvores, nada de livros ou lendas sobre mundos anteriores. Tudo não passara de um sonho, um desvario, um delírio.
Não era fácil, no entanto, ignorar todas aquelas coisas. As músicas, os poemas, as histórias misteriosas sobre uma época anterior, em que as pessoas utilizavam palavras diferentes, tinham arte e aparelhos que emanavam luz como mágica...
Ele tinha visto provas demais para ter alguma dúvida sobre a veracidade daquelas histórias, e a curiosidade que fora despertada dentro de si era uma chama que não poderia mais ser apagada. Era tarde demais. Não poderia simplesmente ignorar tudo.
Mas a agressividade desnecessária de Dantálion o havia feito perder a paciência. Ele é o Sacerdote, afinal, e não tem necessidade alguma de se submeter a situações como essas. Não deveria obedecer a ninguém, muito menos tolerar desrespeito e agressões. Com certeza poderia encontrar as respostas para suas dúvidas sozinho.
Uma outra inquietação amarga, porém, rastejava em sua mente desde que havia conversado com o pai. Era a primeira vez que o antigo Sacerdote, figura imponente e poderosa, admitia que não era onipotente. E algo estava muito errado nisso.
Ele sempre acreditara que os Sacerdotes eram o poder máximo, mas parecia que algo não se encaixava. Havia tantas coisas que não podia fazer... Tantas perguntas que não recebiam resposta, e tantos sentimentos que deviam ser mantidos em segredo...
Talvez não fosse o Palácio que estivesse errado. Talvez fosse ele. Algo em sua cabeça que funcionava diferente dos outros, desajustado. E Dantálion o estava desajustando ainda mais, empurrando-o para além dos limites que deveria conhecer.
Frustrado, ele solta um grunhido abafado, levantando-se da cama e andando em círculos dentro do pequeno quarto. Pega o livro de poemas, mas logo o recoloca em seu esconderijo.
O simples fato de tocar em algo que remete a Dantálion o faz arder de raiva.
Resolve então se distrair com tarefas de Sacerdote.
Apesar do cansaço, sai do quarto e caminha pelos corredores, roçando as mãos insensivelmente pelas paredes ásperas.
Vero vem em sua direção, demonstrando espanto quando o vê.
- Senhor Sacerdote! O senhor não deveria permanecer em sua cama? Veja como está pálido! E o que é essa mancha vermelha em seu rosto? O senhor não está com nenhuma doença grave, está? Eu posso preparar um remédio caso...
- Eu estou bem, Vero. – interrompe com grosseria, sem deter o passo.
- Senhor Sacerdote! Aonde vai?
- Vou ao salão de estudos.
O velho apenas o observa enquanto se afasta.
Embalado pelo torpor do sono e tristeza, empurra lentamente a porta pesada, que range em suas dobradiças, revelando a escuridão completa do antigo salão de estudos, quase nunca frequentado.
O Sacerdote entra no cômodo simples, mobiliado apenas com uma mesa de madeira antiga, algumas cadeiras, uma luminária de azeite e estantes contendo os documentos da cidade.
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Dantálion [COMPLETO]
Science Fiction[DISTOPIA GAY] Lúcio está prestes a dar o passo mais importante de sua vida: assumir o lugar de seu pai como Sacerdote. Dias antes de sua iniciação, porém, as coisas começam a desandar... Dúvidas e medos de infância reaparecem. A insegurança em sua...