Me sento no primeiro lugar da segunda fila a partir do canto do sala, que antes era o lugar do Denis, mas que me cedeu o lugar depois que Rafaela deu um olhar sério para ele e disse que ele deveria ter consideração ao fato de que eu tenho dificuldade de me locomover. Ela diz isso na lata, sem vergonha ou incomodo de eu estar em sua frente.
E eu não me sinto nem um pouco incomodado com isso, ou envergonhado, na verdade eu gosto.
A maioria das pessoas que não são do meu circulo de convivência — com meu circulo de convivência leia-se minha mãe, o tio Carlos e minha avó — me tratam como se eu fosse uma praga e que se eles falarem sobre a minha dificuldade de andar, ou até mesmo olhassem para minha muleta, pudessem pegar a doença contagiosa que é crescer enquanto se está em coma e ter a perda da força da sua musculatura.
Todos os dias eles me ajudam com o que for necessário em termos de material para as aulas — eles nunca me passam cola, não que eu tenha pedido, mas sinto que isso é algo que nunca, NUNCA, vai rolar com esses garotos — principalmente depois que eu falei que não estudei o primeiro semestre. Eu não contei para eles que eu estava em coma e que não entro em uma escola desde 2014, e fico bastante satisfeito por eles não perguntarem (embora eu tenha visto que Samuel tentou, mas Rafaela quase o bateu).
Na quarta-feira eu tenho um prato cheio para o meu Psicólogo e o Tiago parece bastante satisfeito que eu esteja me enturmando.
É só na quinta-feira que eu percebo que em nenhum dia da semana os NERDS saíram para o intervalo. Eu fico tão focado em meu telefone jogando Lost Journey quando os professores saem que nem estava reparando em algo assim.
— Ei — digo me virando na cadeira e olhando para Nicolas, como ele é tímido igual a mim, me sinto confortável para iniciar uma conversa com ele, quando necessário. — Por que vocês nunca saem da sala no intervalo?
Ele me encara como se eu acabasse de contar que fiz xixi na roupa e logo depois se vira para o lado, os outros integrantes do grupo se sentam na fila do canto.
— Ele percebeu. — Nicolas diz e os amigos olham dele para mim.
— O que ele percebeu? — Eduardo questiona e eu fico contente por mais alguém estar confuso além de mim.
— Que nós nunca saímos da sala! — Denis diz, e eu percebo que é verdade, não havia reparado nisso, mas nenhum deles nunca vai ao banheiro ou ao bebedouro. Das 07hrs40min até as 11hrs10min eles ficam sentados dentro da sala.
Não que eu tenha saído muito durante esses primeiros dias, mas a eu tenho uma ótima desculpa para isso.
— Está na hora de falarmos sobre as regras não ditas dos NERDS! — Samuel diz todo animado.
Percebo que todos eles, até mesmo Rafaela que é sempre tão séria, parecem animados com isso — quer dizer, quase todos, Eduardo parece se esforçar para abrir um sorriso quando seus amigos parecem tão contentes.
— Eu adoro quando falamos sobre as regras não ditas! — Rafaela diz.
É assim que todos eles pegam as cadeiras e as puxam para se sentarem próximos a mim.
— Quem começa? — Rafaela pergunta.
— Eu posso explicar o que são as regras não ditas e vocês vão falando depois quais são. — Eduardo fala, parecendo desistir de forçar o sorriso, e os outros concordam. — Tudo bem, as regras não ditas são aquelas regras que todos nós sabemos, mas que não registramos em lugar algum. Elas garantem que sejamos sempre bons amigos e que fiquemos unidos e protegidos.
— Espera e vocês vão me contar? — Eu pergunto e os vejo balançando as cabeças dizendo que sim. — Eu entendi que são regras não registradas, mas será que posso anotá-las? Eu tenho uma péssima memória. — Mentira, minha memória é até que muito boa, mas acho melhor garantir. — Depois que aprender as regras eu destruo tudo.
— Tudo bem, pega o papel e a caneta. — Rafaela diz e eu puxo o caderno, colocando a mão esquerda sobre o caderno (eu sou canhoto) e me apoiando na mesa com o cotovelo direito.
Eles começam a falar alternadamente e eu não perco tempo, no fim estou com as Oito Regras Não Ditas dos NERDS.
1 – Os NERDS nunca deixarão um integrante enfrentar o mundo sozinho, seja pra ir até o café da Neide ou para uma viagem ao Paquistão;
2 – Os NERDS se comprometem a sempre se defenderem contra as ameaças do mundo, mas se for possível evitar as ameaças, assim deve ser feito;
3 – Um nerd nunca se apaixonará pela mesma pessoa que outro nerd. Se isso acontecer ambos devem se abdicar do sentimento em nome da amizade;
4 – Para um nerd o cinema de quarta-feira deve ser tão sagrado quanto a igreja para os religiosos;
5 – Para evitar convergências, um nerd nunca deve obrigar o outro a gostar ou não de Harry Potter. Se a série em questão for Percy Jackson o nerd é livre para fazer sua defesa aberta contra ou a favor;
6 – Um nerd sempre apoiará o outro em suas escolhas de vida, contanto que ela não infrinja as regras;
7 – Os NERDS sempre serão amigos e companheiros, e devem se esforçar para que nada interfira em sua amizade: devem ouvir uns aos outros, se desculparem quando necessário e ajudar sempre que possível.
8 – Nada deve ser mais importante que a amizade entre os NERDS!
— Sua letra é muito bonita! — Samuel diz, antes que eu possa comentar que gostei muito das regras da amizade deles.
— É mesmo! — Denis diz sorrindo. — Parece que eu finalmente poderei ter algum descanso nos trabalhos.
Aquilo me faz sorrir. Até o momento eu não havia feito nada para ajudar eles e nem imaginava que houvesse algo que eu pudesse fazer. Saber que eles gostaram da minha letra — que sinceramente é muito bonita mesmo, e é impressionante que minha mão não tenha perdido a capacidade de escrever tão bem — faz com que eu deseje logo um trabalho escrito, e assim eu possa retribuir a ajuda que eles vêm me dando.
A professora de matemática entra na sala com cara de poucos amigos e os NERDS voltam para os seus lugares. Eu passo o resto da aula encarando a lista das regras e pensando que se eu tivesse feito algo assim com Júlia e Antônio, provavelmente eles ainda seriam meus amigos, mesmo depois de todo esse tempo.
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José e os NERDS Contra o Mundo
Teen FictionJosé nunca assistiu Star Wars. Os NERDS nunca entraram em um campo de futebol. E mesmo assim uma grande amizade está prestes a começar. Há exatos três anos e seis meses atrás, José sofreu um acidente que o deixou em coma dos 17 aos 20 anos. Ao acord...