Detalhes lá fora

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Flashback ...

Tem músicas que ficam na sua cabeça que até mesmo na hora de dormir você canta na sua mente, de tão grudentas que elas são. A gente sabe que a música pode fazer sucesso quando o refrão é a última coisa que pensamos à noite e a primeira que brota na mente pela manhã. Valentina, aquela deusa que literalmente fez meu mundo parar, foi a minha música chiclete daquela madrugada.

Desisti de ficar rolando na cama depois de uma madrugada inteira acordada e me levantei, correndo porque provavelmente eu já estava atrasada só de escovar os dentes. Olhei o relógio que marcava 6h20. Ok, tenho 40 minutos, pensei. O que para mim não era muito, né? Então tomei banho, relembrando aquele cabelo castanho claro, que ia até quase até a cintura. E que cintura! Me sequei, pensando naquelas mãos suaves me segurando e me passando segurança. Escolhi uma roupa para tentar agradar aquela garota linda, que mais parecia uma modelo internacional. Percebi que em todos os meus momentos daquela manhã ela não saiu da minha mente em momento algum. E que manhã deliciosa estava sendo, falei pra mim mesma, já traçando um plano para pelo menos conseguir falar oi para aquele ser que habitava meus pensamentos.

Resolvi olhar para o relógio novamente para ver o quanto estava atrasada e o quanto teria que correr no café e depois até o ponto de ônibus. Foi quando eu gelei: 6h40. Oi? Como? Eu fiz tudo aquilo em 20 minutos? Me restavam 20 minutos? Eu nunca consegui ter 20 minutos para pegar um café e andar até o ponto, que sendo realista ficava a 3 minutos a pé da minha casa, mas por conta da minha incrível habilidade do atraso, parecia que sempre me levava 3 horas até lá.

Fiquei muito confusa, caminhei até a cozinha e dei de cara com a minha mãe, que preparava um queijo quente e ouvia o rádio em sua estação matinal favorita. Ela me encarou e falou descrente:

- Você já está pronta? O que houve? Começou a se arrumar a que horas? Está passando bem? – assim como eu, Lupita, que provavelmente nunca me viu adiantada, estava em choque.

- Não sei o que houve, mas sim. Estou pronta. – eu falei me sentando a mesa para comer, o que eu só fazia aos finais de semana, momento em que eu podia comer com calma e não perder a hora para algum compromisso.

- Também não sei o que está havendo, mas confesso que me deu uma alegria profunda em te ver sentar à mesa, hija. Tome seu café e tenha um ótimo dia na escola. – ela disse me dando um beijo na testa e saindo da cozinha para também se arrumar e ir para o trabalho.

Eu estava muda, completamente imersa em um misto de pensamentos: como eu fiz isso e porque a dona daqueles olhos azuis continuava dentro da minha cabeça. Meu Deus, qual é a conexão daquela garota perturbadora com a minha condição?

Tomei meu café e como já estava no meu DNA, sai apressada para o ponto de ônibus, já esperando que o tal já tivesse passado. Cheguei no ponto aparentemente adiantada? Não acreditei que estava vendo o ônibus chegar lentamente. O motorista abriu a porta, me olhou com uma expressão curiosa.

- Olá, menina. O dia hoje vai ser especial, né. Pois nunca te vi entrar calma e sem estar ofegante, com os cabelos jogados na cara. – disse com um tom de brincadeira, mas feliz por eu ter conseguido pegar o ônibus na hora sem me matar para que isso acontecesse.

Com uma reação ainda indefinida, sorri de leve para o motorista, que era quase íntimo das minhas manhãs caóticas. Entrei no ônibus e vi alguns colegas de escola. Dentre eles, estava Rosa, que me lançou um olhar de aprovação e surpresa. Apenas sorriu e eu sorri de volta, entendendo que fui parabenizada por alguma coisa, que para outros pode ser um simples ato corriqueiro, mas Rosa entendia que para mim, era uma conquista e uma mudança significativa de comportamento.

Pela primeira vez em muito tempo, reparei no caminho para a escola, nas paisagens, nos meus colegas da escola, no cheiro do ônibus, que não era bom, mas era uma das coisas que eu nem conseguia identificar normalmente. Reparei nos sorrisos das pessoas, nas energias. Alguns logo cedo já estavam animados, cheios de vida. Outros, encostados nos vidros, pensativos, quietos. Alguns tentando ler ou ouvindo música em seus mundinhos. Música. Tá ai uma coisa que eu gosto, pois é um dos fatores pelos quais eu gostava de me atrasar, me perder nas melodias e esquecer que eu tinha essa vida meio doida. Ouvia de tudo, apesar de ter uma preferencia por sons que fossem trilha para os meus momentos na frente do espelho - levemente sensuais na minha mente.

Me perguntei o que Valentina gostava de escutar. Ela tem cara de ouvir um rock indie, uma coisa mais intensa, o que combinaria perfeitamente com aqueles olhos penetrantes. Tá ai mais uma coisa para descobrir. E foi quando eu percebi que não ia demorar muito para que aqueles olhos estivessem na minha frente novamente. O ônibus parou no ponto perto da escola e todos foram saltando, um a um. Fiquei por último para ter ainda mais tempo de observação e também pra pensar um pouco mais em como iria abordar a garota dona dos meus pensamentos nessas últimas 24 horas.

Saltei, dando um bom dia ao motorista e comecei a andar para a entrada do colégio, ainda distraída. Assim que cheguei na porta, senti um empurrão que me jogou para a porta e me fez sentir uma pontada de dor na barriga.

- Sai da frente, lerdeza. – ouvi aquela voz que sempre foi um dos principais tormentos dos meus dias. Sem dúvida, o cara mais babaca da escola. O nome dele era Lucho, filho do diretor do colégio, o que ele achava que lhe dava o direito de ser um completo imbecil e maltratar qualquer um que cruzasse seu caminho.

- Você até que não é de se jogar fora, pena que é meio retardada. – riu juntamente com seu bando de amiguinhos idiotas, que faziam questão de me cercar, me mandando beijinhos ao mesmo tempo que riam e me empurravam de um lado pro outro. Isso acontecia desde que eu tinha 14 anos e fui para essa escola. Já havia passado por muitas, pois eu sempre tinha problema com os métodos de ensino e os professores não demonstravam muita paciência comigo. Nessa escola onde estava agora, os professores eram mais compreensivos. Não eram moleza, mas eram mais sensíveis às minhas dificuldades, acreditando que eram reais e não algo que inventava para não fazer deveres de casa. Já os alunos, eram sempre os mesmos, independente do colégio em que eu estava, eu era sempre "a aluna lerda e retardada".

Eu me mantinha de cabeça baixa, pois eram pelo menos 5 garotos em volta de mim. Segurava meu livro contra meu peito, de maneira que me sentia um pouco mais protegida até eles se afastarem de mim, ainda falando baixarias e brincadeiras de mau gosto. Quando eles já estavam no fim do corredor, observei que todos olhavam para mim sentindo pena e ao mesmo tempo dando razão aos idiotas. Menos uma pessoa. Uma pessoa me olhava com preocupação, carinho, com raiva da situação e com ... amor? Não.. não era amor. Mas parecia.

Ela estava parada ao lado do bebedouro que ficava a alguns metros de onde eu estava. Estava linda, de calça jeans  clara de cintura alta, uma blusa preta simples e um tênis branco. A mochila azul caía em um só ombro e seu cabelo cobria a alça, de tão longo que era. Enquanto ela fazia eu me perder em meus pensamentos, a senti se aproximando de mim. Foi quando me apavorei, arregalei os olhos e quis fugir de tão nervosa que ela me deixava. Mas sabe aquela pontada de dor na barriga que eu havia sentido? Olhei para baixo e pensei: ótimo dia para estar de blusa branca. Percebi que não havia sido apenas uma pancada, já que uma pequena mancha vermelha se formava no tecido. Fiquei gelada e pensei no que poderia ter sido, ainda sem coragem de levantar a blusa no meio do corredor do colégio, com todos aqueles olhos em mim. Enquanto tentava esconder a mancha com meu livro, um par de olhos já havia captado a situação.

- Oi. Sei que a gente nem foi apresentada ainda, mas vem comigo até o banheiro que eu te ajudo. – ela disse chegando muito próxima de mim e me deixando sem o pouco ar que eu ainda tinha nos pulmões. Pegou na minha mão e saímos caminhando pelo corredor, o que foi uma atração para os vários outros olhos curiosos que nos observavam, incluindo os de Lucho, que claramente já estavam vidrados na única pessoa que ele não iria ter, pois eu faria de tudo para que ela fosse minha.

O que ficou pra trásOnde histórias criam vida. Descubra agora