Abra os olhos

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Flashes daquela noite de amor pleno sempre vinham na minha mente. O suor, a saliva, as lágrimas. Nossos líquidos eram um só, se misturavam em meio a tantas sensações e sentimentos. Eu era inexperiente quanto as emoções, mas eu poderia jurar que poucas pessoas tinham um primeiro amor como eu tive. Era tanta conexão, de tantas maneiras diferentes que em momento algum nossas certezas eram questionadas. Eu a queria, ela me queria. Corpo, mente e alma. Por isso que estar novamente sentada ao lado dela, sem poder tocá-la era tão difícil

Nossa vivencia juntas não foi de anos, uma relação longa, cheia de conquistas de casal, construções para o futuro, mas ela foi tão intensa como se tivéssemos ficado 30 anos juntas. Eu conhecia as reações dela para basicamente tudo. O sorriso de alegria era diferente do sorriso de vergonha, o franzir da testa de não entender algo era diferente do pensativo. Eu prestava atenção nela como se fosse a minha última missão na terra. Acredito que era recíproco, pois ela nesse momento me olhava e tinha o sorriso no rosto que dizia "sai de um pensamento profundo e volta pra mim".

- Para de me olhar assim, por favor.

- Assim como? Como quem sabe que você tava bem longe daqui? – ela gargalhou de leve, mas com toda a certeza de que tinha acertado onde eu me encontrava.

- Para de me analisar e começa a falar. Você tá me enrolando, como sempre. – fiquei séria e sem paciência. Já tava vendo o momento em que ela ia fugir para o banheiro ou pegar outra água no avião só pra evitar conversar, coisa que ela faz super bem.

Ela parou de gargalhar, engoliu a seco e limpou a garganta de leve para começar a falar. Aguardei, observando seus movimentos, esperando que ela tivesse algum indício de nervosismo como no passado, onde eu precisaria acalma-la, mas não aconteceu.

E então, ela foi direto ao ponto.

- Juls, ele se foi.

Tive um flashback imediato que me jogou para aquele momento pós paixão e sexo inesquecível. Eu deitada em cima dela, nua, enquanto ela, também nua, fazia carinho em minha cabeça, mexendo nos meus cabelos. Ambas mudas, pensativas, tomadas pelo cansaço não só físico como emocional. Dessa vez eu não começaria a conversa, pois já havia tentando arrancar algo dela e olha onde paramos. Não que eu estivesse reclamando, já que era algo inevitável, me dar por completo para Valentina. Mas o que também era inevitável era alguma explicação. Eu aguardaria até que ela estivesse pronta para se abrir. Até que ela percebeu que não teria escolha a não ser a verdade.

- Nunca achei que fosse sentir isso por alguém. Você não sabe o que faz comigo, Juliana. Desde a primeira vez que te vi.

- Eu entendo sim, Val. Desde aquele dia na escola...

- Juls, esse não foi o primeiro dia em que eu te vi.

Pronto. Começou a sinceridade e com apenas uma frase ela me deixou apavorada. Aonde íamos com isso, se nem o primeiro dia em que nos conhecemos foi realmente o primeiro? Sai de cima dela em um movimento brusco, sem falar nada. Ela viu no meu olhar que eu me afastei, não só de corpo, mas com uma parte do meu coração. Nossa história já começou com uma mentira. Ela tentou me segurar e eu permaneci forte na minha distancia.

- Por favor, me ouve e tente não ter raiva. Por favor!

Eu fiz que sim com a cabeça para que ela continuasse. Ela pegou ar, fechou os olhos com certeza pensando na melhor maneira de se expor pra mim. Como se confessaria e ao mesmo tempo eu não sairia correndo daquele carro? Valentina suava agora por outros motivos.

- Acho que tenho que começar contando daquele dia, o dia em que perdi minha melhor amiga, o dia em que minha mãe faleceu. – senti que o papo ia ser muito longo e resolvi pegar nossas jaquetas. Estava mais frio dentro do carro, já que nossos corpos não aqueciam um ao outro. A entreguei a jaqueta, a blusa e ela vestiu sua calcinha e eu a minha. – Acho que você já percebeu que eu tenho algo incomum, não é? – fiz que sim e segui muda.

- Naquele dia em que meu pai nos disse que iríamos mudar novamente, eu tinha tido uma sessão que ele carinhosamente chamava de sessão de autoconhecimento. Eu tinha doze anos e desde os meus seis ele me dizia que eu precisava ser estudada, pois tinha algo diferente dentro de mim. Ele tinha razão. Descobri naquele dia que o que tinha dentro de mim era muito ruim. – os olhos de Valentina se fecharam, em claramente uma mistura de dor, raiva, saudade e tristeza. Ela sofria ao relembrar aquilo tudo, mas eu não podia conforta-la ainda, já que a mentira ainda pairava entre nós. A deixei continuar no seu tempo.

- Meu pai nunca me tratou com carinho. Ele parecia ter sempre medo de mim, receio de que eu tivesse em mim algo incontrolável. E não é que ele tinha razão? – Ela riu de nervoso e eu já notava ela tentando controlar suas mãos, as segurando para tentar se acalmar. Eu tentava não demonstrar que eu mesma ficava cada vez mais inquieta.

- Quando sai do meu quarto naquele dia, o mundo inteiro me parecia em câmera lenta, Juls. Até hoje eu não sei colocar muito bem em palavras o que acontece, mas o que eu senti é que eu tenho o corpo mais acelerado e eu vejo cada detalhe ao meu redor. Mas para os outros, é o oposto. O que eles enxergaram em mim naquela noite foi um corpo efervescente e completamente acelerado, chegando a perder o controle dos meus movimentos. Quando eu dava um passo, parecia que estava batendo os pés no chão com força, ou se eu fosse segurar algo acabava quebrando o objeto pois eu não conseguia medir a minha força. Era como se tudo ficasse mais sensível ao meu toque.

Eu ouvia e não conseguia digerir o que entrava pelos meus ouvidos. Valentina, essa perfeição na minha frente, tinha algo muito similar ao que eu tinha. Uma condição corpo-temporal, onde o que nos cerca não faz sentido, a realidade dos outros não é a nossa. Eu estava cada vez mais ofegante e sem chão. Preciso saber até onde essa história vai, mas estou assustada em como vai terminar. Ela parecia perceber que eu estava com medo e tentou segurar a minha mão.

- Juls, por favor, preciso que você tente me entender. Por favor. Eu só tenho você.

Meu coração estava muito acelerado, completamente confuso, mas a certeza de quem não poderia abandona-la nesse momento me tomou. Dei a mão pra ela e senti um aperto extremamente forte. Não soltei e a deixei continuar.

- Eu fui para cima do meu pai naquela noite. Na minha visão eu estava apenas discutindo, mas eu já estava num grau de surto muito avançado. Quando me aproximei do meu pai, senti ser puxada pelo braço por alguém. Olhei para o lado e vi o rosto da minha mãe. Era de puro pavor, Juls. Eu nunca tinha visto a minha mãe ter medo de mim. Ela sempre foi minha rocha, quem me acalmava, quem me deixava em paz. Quando a olhei, me senti decepcionada. Eu não me orgulho disso, mas fiquei com raiva, Juls. Me senti completamente sozinha como se nem ela fosse querer mais estar ao meu lado, me proteger, me amar. E naquele momento, cometi o maior erro da minha vida.

Suas pernas se debatiam, seu lábio tremia, sua mão praticamente esmagava a minha e seus olhos estavam trincados. Eu aguentava a dor e tentava manter uma respiração constante para não desmaiar de tanto nervoso.

- Val, olha pra mim. Abre os olhos, você precisa se acalmar, olha pra mim!

Ela não conseguia. Seu transe era profundo. Não falava mais nada, apenas sofria em silêncio e se mantinha naquela posição com todos os músculos enrijecidos. Tentei mais uma vez, mas agora elevando meu tom como nunca fiz antes.

- Valentina, você está me machucando. Abre a merda dos olhos, agora!

Ela abriu e juntamente com os olhos, ela liberou fúria, toda a força que os pais viam na filha que eu não poderia entender até aquele momento. Foi tudo tão rápido que só me dei conta do que tinha acontecido quando ela se afastou por completo de mim, com o olhar já da Valentina que eu conhecia, encolhida no outro canto do banco, de boca aberta sem saber o que falar. Ela tremia, assim como eu me tremia inteira.

- Desculpa. Desculpa, Juls. Por favor, não me deixa sozinha.

Fui tentar me aproximar de Valentina e senti uma tontura. Confusa, coloquei a mão onde senti uma ardência e uma pontada de dor. Levei a mão até a parte de traz da cabeça e trouxe pra frente dos meus olhos. Sangue. Como assim eu tinha sangue na minha cabeça? Eu virei pra tentar entender e vi o vidro do carro rachado. Naquele exato momento, eu soube como a mãe de Valentina havia morrido.


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Valentina, sua danada. Conta tudo logo pra Juliana, mulher!

O que ficou pra trásOnde histórias criam vida. Descubra agora