Silêncios

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Minha mãe sempre me mostrou que o maior amor que existe é o de mãe. Ela confessou inúmeras vezes, em meio aos momentos mais complicados que passamos juntas, que faria tudo por mim. Tudo mesmo e que não teria a capacidade de escolher nada que não fosse o meu bem-estar. Não tínhamos muitos recursos, mas Lupita nunca deixou de me dar tudo o que eu precisava. Sempre se virou para que não faltasse nada e me criou em meio a muitas conversas, deixando tudo sempre às claras. Quando tínhamos dinheiro, quando não tínhamos, quando precisava segurar qualquer moedinha para poder pagar meus médicos.

Sempre foi muito claro pra mim que o amor que ela sentia era de fato o mais puro que existia, o tipo de amor que ninguém consegue colocar em palavras, apenas sentir, porque é tão grande e vasto que não cabe em nenhuma frase. E foi esse tipo de amor que fez Valentina e eu estarmos frente a frente naquele café, em mais uma situação inimaginável. De repente era inimaginável para outras pessoas, pois desde que nos conhecemos, tudo o que pudesse ser insano, impensável, incompreensível parecia nos cercar. E pelo que ela havia acabado de me falar, muito antes de nos conhecermos, nossas vidas já tinham um tom de ficção científica.

O tremor estava aumentando sob meus pés e Valentina agora se mantinha de olhos fechados, claramente fazendo uma força desumana para tentar se acalmar de fato, sofrendo e sem conseguir dar os próximos passos sozinhas. Nesse momento, um flashback de uma situação com a minha mãe me veio a mente:

Me lembro que era um sábado e eu estava muito animada para ir a festa de uma coleguinha que faria 9 anos. O aniversário seria na piscina da casa dela e tinha muito tempo que ninguém me convidada para ir a nada. Eu acordei muito cedo, mais cedo que as galinhas, pois não queria perder a hora. Já era uma questão para mim, pois o dia passava em velocidade máxima. Eu estava pronta as oito e meia da manhã, mas o aniversário só começa ao meio dia. 

Quando minha mãe foi me chamar para o café, eu já estava sentada na cama, de biquíni por baixo da roupa, aguardando o momento de sair. Ela, me observando, sentiu um misto de emoções. Me achou uma graça, já toda prontinha, "sua moreninha guapa" como me chamada. Ao mesmo tempo, pensou no meu futuro. Se aos 9 anos eu vivia dessa forma, em constante inquietude, como seria quando chegasse a minha vida adulta?

Ela então entrou no quarto, ajoelhou-se na minha frente e me fez olhar dentro de seus olhos.

- Juliana, você é a pessoa mais linda desse mundo, sabia? – eu apenas sorri e fiquei com muita vergonha. Era uma menina normal, não era feia e nem bonita. – Me prometa que você vai descobrir a beleza de ser quem você é, tá? Não pense que por ser diferente, você é menos que os outros. Você, minha querida filha, é perfeita nas suas imperfeições. Consegue prometer isso pra mim? Que você vai se amar sempre? – eu era muito jovem pra entender aquele contexto todo, mas me lembro de prometer algo que ainda acreditava ser possível.

Acho que nunca cumpri aquela promessa, nunca me amei demais e muito menos me achava perfeita. Até porque aquele aniversário na piscina foi a última festinha que eu me lembro de ter sido convidada e eu tentei ao máximo esquecer aquele dia. Me recordo de ficar olhando as outras crianças na piscina por um tempo e quando dei por mim, o bolo estava sendo cortado e eu não participei de nada, apenas observei. Era assim que muitas vezes eu me sentia no mundo: uma observadora que vê tudo em uma câmera rápida e acompanha o que consegue. Pinçava pedaços de momentos da realidade e com eles tentava compor uma história em minha mente. Até que ela chegou na minha vida.

Com aquela memória na minha mente, sabia que tinha que fazer algo para tirar a Val daquele transe ou teríamos um problema que eu ainda nem sabia direito qual era, mas que me parecia um dos grandes. Soltei sua mão e rapidamente segurei com as duas o seu rosto, aproximando muito o meu, encostando as nossas testas. Não previ se esse movimento a assustaria ainda mais, mas eu o fiz.

- Val, abre os olhos. Preciso que você me olhe. – pedi em um tom calmo e baixo, quase sussurrando como um mantra budista. A princípio, ela não se mexia, mas o tremor que sentia no chão foi lentamente diminuindo, suas mãos já não se mostravam tão rígidas e sua expressão foi se transformando em algo mais suave.

- Valentina, por favor, respire e abra seus olhos. Preciso ver seus olhos. – e assim, como uma súplica, ela me ouviu. E naquele momento, em que nossos olhares se cruzaram e a nossa respiração começou a entrar em um só ritmo, nossas peles tinham a mesma temperatura, eu não me contive mais.

- Você é linda. Você é perfeita e eu, Valentina, eu te amo. Preciso que você saiba disso.

O silêncio. Ele é bom para muitos momentos, mas pra esse específico pode ser a maior adaga que entra no coração de alguém. E foi isso que obtive por o que parecia ser uma eternidade. O mundo nunca esteve tão lento e imóvel, enquanto eu aguardava alguma resposta. Nem que fosse um obrigada ou um sorriso sem graça de quem não sente a mesma coisa. O que acontecia naqueles segundos infinitos era a completa tortura. Até que dos olhos azuis em choque, mais arregalados e assombrados que já tinha visto da minha vida, escorreu uma gota solitária, que percorreu aquele longo rosto por completo, demorando uma vida para se soltar de seu queixo.

Enquanto eu acompanhada o movimento daquele líquido, não percebi que não eram apenas mais as nossas testas se encostando. O nariz dela veio de encontro ao meu, enquanto as mãos se puseram como as minhas. Ela segurava meu rosto enquanto eu a puxava singelamente mais pra perto de mim. Do nariz, para a bochecha, que acarinhava sutilmente o meu maxilar com um movimento cheio de ternura, até que a parte mais desejada viesse para me tirar do meu sofrimento. Sua boca, aquela que eu já experimentara e que havia deixado o sabor eterno na minha memória, se encontrou com a minha. Inspiramos para que todos os cheiros e sabores pudessem aflorar com o nosso toque. Não nos mexíamos com medo de que aquele sonho acabasse e nos víssemos novamente na realidade. A nossa ligação era inegavelmente forte e apenas com aquele resquício de pele já foi o suficiente para me deixar em completo êxtase.

Mas a realidade nos chamava. Não aprofundamos o beijo, apenas afastamos nossas bocas e voltamos a deixar nossas testas recostadas uma na outra, praticamente como uma sustentação. O silêncio apareceu novamente, mas dessa vez acompanhado de um leve sorriso em nossos lábios, assim como um carinho recebido no rosto, que ambas não conseguiam parar de fazer, como se aquele toque significasse tudo. Amor, cuidado, compreensão e cumplicidade.

- Eu nunca achei que fosse ouvir novamente essas palavras de alguém. Obrigada, Juls. – meu coração estava uma zona. Eu achei lindo e ao mesmo tempo a coisa mais triste do universo. Ninguém falava que a amava? Ela merecia todo amor do mundo, será que ela não sabia disso?

- Não precisa me agradecer. Você merece todo o amor do universo. – apaixonada? Eu? Completamente.

- Não mereço, nunca mereci e não tenho ideia do que fiz pra ter o seu amor. Mas quero que você preste atenção no que eu vou falar, ok? – ela agora dizia séria, ainda com o rosto próximo ao meu, mas fitando meus olhos por completo e com intensidade. – Não queria que fosse assim. Não queria fazer revelações e talvez te perder em seguida, mas eu não quero mais viver assim, com segredos. Se você me deixar, eu vou entender, mas antes que exista a possibilidade de te perder, Juliana, eu preciso te confessar o maior dos meus segredos. – eu a via, a enxergava e acho que era a primeira vez em muito tempo que alguém a olhava dessa forma. E eu compreendia muito bem o que era não ser enxergada.

- Juls, eu nunca senti nada assim antes e estou com muito medo do que irá nos acontecer, mas eu não quero e nem posso ficar longe de você. Eu tenho sim um segredo e acredito que você é a única pessoa que poderá me entender. Sabe por quê? – eu não conseguia nem respirar enquanto esperava pelas próximas palavras – Minha mãe me falou antes de morrer que apenas uma conexão verdadeira, uma ligação cheia de amor poderia me salvar, me ajudar entender quem eu sou. E por isso que eu preciso estar aqui, sentada nesse café, com você, porque eu Juliana, também te amo e estou completamente apaixonada por você!

E o momento que poderia ser considerado o mais feliz da minha vida foi arrancado de mim com apenas um grito de uma voz que me apavora até hoje.

- Valentina, o que você está fazendo aqui com ela?



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Enrascadas. De amor.

Agora é a hora da verdade. Será que Juls guenta?

Fala logo, Valentina. Que diabos está acontecendo?


O que ficou pra trásOnde histórias criam vida. Descubra agora