O que resta?

1K 85 18
                                    


O infinito é uma definição interessante, não é? Algo que não acaba. Como algo pode não acabar se fomos ensinados desde pequenos que tudo um dia, de fato, acaba? Nos nascemos, crescemos, vivemos e morremos. Ciclo de basicamente tudo na face da terra, inclusive do amor. Aprendemos erradamente em contos de fadas que podemos em apenas um segundo encontrar o nosso amor verdadeiro, que em um olhar você entende que uma relação vai durar para sempre. Para sempre. Mas em algum momento, a gente descobre que esse mito é irreal, e que o amor também pode seguir o ciclo da vida e acabar.

O sempre passa a ser relativo. Vira o ditado "pra sempre, enquanto dure". E vamos ser sinceras: nada dura tanto quanto gostaríamos. O fim de semana é curto, o corte de cabelo perfeito se vai em dois meses, a música que a gente ama cantar parece que passa mais rápido, uma viagem de férias inesquecível tem passagem de volta, o pacote de biscoito é consumido em apenas alguns minutos e um grande amor pode ser arruinado em uma frase.

Juliana, você precisa se afastar de mim. O que ela falou é verdade.

Sentada naquela poltrona de avião, encarando o perfil daquela deusa que infernizou meus mais profundos pesadelos e sonhos, senti aquele soco no estômago só relembrando aquele infeliz momento em que a flagrei flagelada, em carne viva. Não só sua pele como também sua alma.

- Não sei o que te falar. Tenho ainda tanto pra dizer, mas parece que tem algo travando a minha garganta, como se o que eu falar pode destruir o que nos resta. – ela não me encarava de volta, apenas segurava a instrução de "como agir em caso de um acidente" que tinha na poltrona a frente.

- E o que ainda resta? O que depois do que tudo que aconteceu você acha que ainda resta entre a gente? – eu indaguei ligeiramente irritada, mas ainda controlada pois sabia que não tínhamos para onde correr, e afinal de contas, ela sabia que eu estaria naquele voo, consequentemente, ela quis ter essa conversa. Eu daria tempo a ela para explicar tudo com detalhes.

A minha pergunta fez com que ela finalmente virasse o rosto pra mim, lentamente. Seu corpo também virou, sem que ela precisasse retirar o cinto de afivelado do seu assento. E ai ela sussurrou baixinho, chegando aquela boca carnuda mais perto da minha orelha do que eu gostaria.

- Resta tudo o que a gente quiser. Eu ainda sou sua.

Se as pessoas do avião pudessem me ver agora, acho que passaria vergonha. Como depois de mentir, me magoar e sumir ela ainda conseguia me fazer ao mesmo tempo derreter e me congelar? Não só a minha boca estava entreaberta, mas eu fiquei instantaneamente ofegante, e vamos dizer, molhada em certas partes. Que raiva que me deu, mas que deliciosa era essa raiva. Queria esmurrar a cara dela, mas se possível com a minha língua. Que sentimento dúbio, que ódio eu sentia de mim mesma. Havia prometido não procurar por ela, não querer saber da minha cura, tinha reaprendido a viver comigo mesma. E ai ela aparece e a lentidão recomeça. Tínhamos todo o tempo do mundo e isso me apavorava.

E minha mente voltou àquele chão de vestiário do colégio. Quando eu sentei, sem forças de me levantar, em um estado catatônico olhando para as paredes de azulejos brancos incrédula do que eu havia escutado. Como Valentina, aquele anjo dourado, do beijo mais saboroso que alguém poderia ter, de aura pura poderia ter algo a ver com a morte da mãe? O que ela quer dizer com isso? Eu quero saber ou prefiro realmente sumir e esquecer que em algum momento eu fui normal, sempre ao lado dela?

- Juls, por favor, não desmaia. Eu não tenho forças hoje para te proteger. – ela dizia sentada ao meu lado, sem saber se me encostava ou se afastava para buscar ajuda.

- Val, eu que não tenho forças. Tanta coisa tem acontecido. Não consigo formular perguntas agora, mas eu preciso que nesse momento, você me deixe sozinha.

Ela aos poucos foi se afastando, concordando com a cabeça, seus olhos cheios de lágrimas prontas para cair, mas ela as segurava, mordendo seu lábio inferior com toda a força que ela ainda tinha. Sem falar nada, ela recolheu suas coisas, colocou sua mochila nas costas enquanto eu permanecia na mesma posição, olhando para o nada em choque e exaustão. Quando se aproximou da porta, parou. Não a pude ver, mas sei que nesse momento ela já não conseguia mais segurar algumas daquelas gotas que estavam pra cair das suas esferas azuis. De sua garganta, saiu uma voz embargada que apenas afirmou:

-  Você precisa saber que não fez nada de errado ontem. Você, Juliana, é perfeita.

E com isso, me deixou naquele chão frio. Eu, agora, cobria meu rosto com minhas mãos, em um misto de alívio, medo, paixão e receio. Quem era aquela garota e como eu cai tão fundo nessa armadilha?

É claro que eu não fui a aula de educação física. Não lembrei nem que estava no colégio durante um bom tempo, até que ouvi vozes e risadas femininas se aproximando.

- Ih gente, a dodóizinha tá jogada ali no chão. Será que ela brigou com a namoradinha?- risadas altas e sem nenhuma compaixão eram compartilhadas pelas integrantes do grupinho de Nayeli. A única garota  da turma que se preocupou em perguntar se eu estava bem foi Rosa, que se abaixou para que eu a olhasse nos olhos.

- Juliana, você quer que eu chame alguém?

- Não, Rosa. Eu só preciso ficar quieta. Daqui a pouco eu levanto e vou embora.

- Você e a Valentina brigaram? Ela passou pela quadra aos prantos e a professora nem conseguiu segurá-la para a aula.

Uma dor chamada culpa apareceu para piorar a situação. Não entendo como eu me sentia culpada nessa situação, mas não queria que Valentina sofresse, não mais do que ela parecia fisicamente estar sofrendo.

- Nós tivemos uma discussão. Mas vai ficar tudo bem. – acho que nem eu estava acreditando em mim naquele momento. Rosa até colocou a mão no meu ombro pra me consolar. Eu devia estar com uma cara péssima pra aquela compaixão ser demonstrada como nunca havia sido.

Rosa foi para o chuveiro e Nayeli se aproximou, também se abaixando para ficar na altura do meu olhar.

- Espero que essa briga não seja um teatrinho. Se amanhã ela estiver com você, já sabe: a história da sua princesinha ser uma assassina será a fofoca da escola. – o prazer daquele momento estava em seu rosto, estampado como uma vitória de final de campeonato e eu, não consegui desmentir aquela derrota. Aceitei como se tivesse gol no último minuto de jogo. Abaixei a cabeça e a deixei comemorar.




///////////////////////////////////////////////

Foi curto, mas o próximo já ta chegando.

Maior e melhor.


O que ficou pra trásOnde histórias criam vida. Descubra agora