- Quando se está caindo e caindo por muito tempo, você não se preocupa mais com o impacto que o seu corpo sofrerá ao atingir o chão.- Já de volta? – Boca indaga, desdenhoso, sem sequer olhar para mim, se ao menos se permitisse voltar os olhos á mim, por uma fração de segundos sequer, saberia que estou prestes a desabar, desmoronando, em pleno estado de miséria e ruina total.
Apanho minha toalha, seguindo para o banheiro, estou arrasado, machucado, mas ainda preciso me banhar e deixar que a água leve os vestígios de tudo o que ficou, que limpe todas as feridas abertas, que amenize a dor em meu peito:
- Achei que tivesse nojo do que fazíamos quando estávamos juntos. - Contraponho, num tom notavelmente ressentido, desolado.
- A coisa não mudou... – retruca, absorvido pela droga do seu joguinho de tiro em terceira pessoa, posso ouvir os efeitos de tiro de dentro do banheiro. - Eu só achei que o Tómas demorasse mais no serviço, sabe? Vai ver é por isso que você tá aí todo cheio de raiv..., mas, espera um pouco, você falou "FAZÍAMOS"? tipo, no passado?
De repente não ouço mais os ruídos explosivos do jogo, ele pôs em pausa, uma vez no banheiro, me despindo pouco a pouco, percebo que o ato cometido pelo Tómas me estampou uma vermelhidão notável no local da agressão. – Talvez um moletom me mangas compridas resolva. – Pondero.
- É isso?! – Boca insiste, voltando a atrair minha atenção. – "Estávamos juntos"? – indaga.
- É! ESTÁVAMOS. – Esbravejo, me sentindo péssimo em ter que reafirmar o fato, como se, ouvir tudo pela minha própria boca torne a situação ainda mais verossímil e debilitante. Ainda que a porta esteja fechada, sei que ele me ouviu claramente.
Entro no boxer, ligando o chuveiro e sentindo a água fria castigar o meu corpo, as duras palavras do Tómas voltam a ressoar em meu consciente, me atormentando e me impedindo de colocar as ideias em ordem. Talvez o único responsável por isso tudo seja eu, que algum dia cheguei a cogitar que tudo o que lia e via nos filmes pode saltar fora das páginas e telas e assumir aspectos reais, a coisa não é assim, posso ver nitidamente agora, as pessoas são cruéis e impiedosas e o fundo do poço está sempre à frente, no próximo passo, uma hora você está andando e na outra, queda livre.
Eu só queria ser amado, mas acho que o mundo cobra um preço caro demais por isso...
O chuveiro é sempre um ótimo companheiro quando se trata de momentos infelizes, ninguém pode ouvir seu choro – por mais intenso que seja. – e nem ver as suas lágrimas, que se perdem e escorrem para o ralo junto com toda a água...
...
Já nem mesmo soluço quando deixo o banheiro, mas, as manchas vermelhas em minhas pálpebras denunciam o que fiz, o Boca agora percebe, e posso ver através do seu rosto um aspecto mais preocupado - quase que aflito, eu diria – ele não arrisca uma palavra sequer, mas posso ver que parece agoniado com algo. Me lanço sobre o meu colchão, abatido, só quero pegar no sono e esquecer que o conto de fadas algum dia aconteceu...
Mas não é tão simples assim, o sono foge de nós quando estamos sendo afogados em lembranças, sejam elas ruins ou boas:
- Escuta... – ouço o Boca se aproximar, após cerca de meia hora, mostrando que também não conseguira pregar os olhos, o toque de recolher já soou e o dormitório é um breu, lá fora o barulho dos animais noturnos ecoa. – O que aconteceu? Ele não te machucou, né?
Ainda estou atordoado, não consigo articular as palavras direito, meus pensamentos são uma completa bagunça e me surpreendo ao vê-lo aqui, diante de mim, encorajando-se e mostrando certa preocupação, mesmo diante das nossas guerras recentes e nossos constantes desentendimentos:
- Eu vou ficar bem... – suspiro, e então ouço seus passos se afastando e retornando para a sua cama, do outro lado. Ele deita, e após alguns minutos, irrompe o silêncio novamente:
- Sabe, deve haver algum determinismo estranho, algo que faça os carinhas gays, em sua maioria, se apaixonar por garotos héteros acéfalos que nunca irão querer nada além de alguns minutos de tesão. Você pode não saber, mas aqui dentro desses muros, essa novela se repete o tempo todo...
Suas afirmações penetram em minha mente, me fazendo sucumbir a elas, não sei quando exatamente caio no sono, mas ele chega, apesar de tudo, o sono sempre vence...
...
Me arrasto até a primeira aula, que me tortura a cada minuto, isso se repete durante todo o primeiro tempo e sei que durará o dia inteiro, na hora do café, finalmente encontro o Tómas, ao longe, sentado numa das mesas e entrosado com o restante do bando como se nada tivesse acontecido ontem, o Boca é o único que me vê, mesmo quando decido ir embora sem nem mesmo me servir, ele nunca está cem porcento imerso no bando, como se aquilo não fosse pra ele, mas decide manter vínculos com o Tómas por conveniência, pelos benefícios, ainda que tenha que viver essa farsa, desconexo do restante do grupo, um mero cachorrinho em meio a um bando de raposas, todas agindo juntas, mas sempre visando o benefício próprio...
É na aula de história que algo muito estranho acontece, tudo começa pela carteira do Jp, que hoje, surpreendentemente se encontra vazia, eu estou cogitando sobre qual das escolhas ele deve ter feito quando o vice diretor entra na sala, interrompendo a aula e solicitando que o quarteto da reprovação se apresente na sala do Diretor, eles se entreolham, transtornados, possivelmente se perguntando como a coisa chegou nesse ponto, como morderam a própria cauda, quando passam por mim, vejo as cenas das agressões sofridas retornando em flashes, e eu só desejo que a justiça seja feita.
Mas, qual terá sido a saída encontrada pelo Jp, afinal?
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Capítulo do Pedro (Spin-off Alojamento dos Héteros)
RomantizmAntes do 211, da paradise e dos inúmeros eventos que procederam a chegada do Alexei ao São Vicente, existia o Pedro; recluso, antisocial e preso as amarras da timidez, ciente de que estaria fadado a não ter alguém durante toda sua existência, o garo...