- Hayes, Grace.
Risco mais um dia no calendário. "a melhor solução para seguir em frente é esquecer o que passou" puxo a frase do bloquinho de auto ajuda que minha mãe colou na geladeira. Frase estúpida. Duvido que as pessoas que escrevem essas porcarias já tenham sofrido de verdade para acreditar que dizer em voz alta algo tão simples vá milagrosamente mudar minha vida. Anoto as três coisas que senti no dia de hoje. Irritação. Mais dor. Dor mais leve. Minha terapeuta me disse que riscar todos os dias encerrados e fazer um breve resumo deles me ajudaria a não pensar muito no que está por vir e sim no dia de hoje, e comparado com o mesmo dia, um ano atrás, eu estava melhor. Riscado. Pego o patê de atum na geladeira e acaricio a foto de Maddie colada na porta do congelador com o imã de joaninha que era seu favorito. Aubrey queria me fazer companhia no dia de hoje, mas não quis. Queria passar o sexto aniversário de Maddie sozinha. Evan havia me mandando algumas mensagens, mas repito: só queria ficar.. me sentir sozinha. Como a maioria das últimas noites. Me sento sozinha na mesa minúscula da cozinha, até ouvir Lolita rastejando pela casa. Minha Golden Retriever misturada com mais mil raças desse mundão já estava velha e também não estava tendo um dia fácil. Minha mãe estava me ligando o dia todo também, eram dez horas ainda e eu só gostaria que esse dia de merda acabasse. Olhava pro quarto no final do corredor e ele me olhava de volta.
- Eu não devo ir lá, não é? - pergunto para Lolita, que está completamente absorta a situação.- que se dane. Caminho a passos lentos até o quarto lilás. Na porta estava a escrita em madeira que eu havia mandando fazer há seis anos. " Maddison" Minha vida inteira cabia num quarto 4x5m. Escuto os passos pesados de Lolita pelo corredor, e assim que tenho coragem de abrir a porta, entramos juntas. Me arrependo no mesmo instante. Aquele quarto é o meu quarto da dor. O cheiro de Maddie está aqui mesmo depois de um ano da sua morte. Suas roupas estão todas onde estavam antes, sua cama tinha seu panda de pelúcia e seu espelho da penteadeira ainda tinha colado uma foto nossa. Eu e Maddie abraçadas no seu primeiro festival de música. Seu violino estava encostado ao lado da cama e... seu par de sapatilhas pretas estavam jogadas ao lado do armário. Todos os dias eu brigava com ela pedindo que ela deixasse as coisas no lugar. Eu daria minha vida para que ela pudesse bagunçar toda a casa se ela quisesse. A dor me atinge feio. Me deito em sua cama e quando seu cheiro vem novamente, estou me afundando em minhas próprias lágrimas. Lolita está nos meus pés sentada, quieta como nunca. Eu choro descontroladamente, pensando em como minha noite teria sido feliz se Maddie ainda estivesse aqui para comemorar seu sexto aniversário. Ela se foi. Repito a mim mesma. Eu deveria sair daqui. Ela se foi. Mas seu cheiro é a única coisa que tenho para me lembrar. Mas quem estou querendo enganar? Eu nunca esqueceria o cheiro da minha filha.————————XX—————————
Blake está na porta esperando minha chegada. Nunca me atraso, mas a noite anterior foi um caos. Estou destruída e atrasada, dane-se. Assim que me aproximo, vejo a menina ruiva sentada em um dos bancos do lado de fora, lendo algum livro infantil. Seu cabelo está cortado em long bob, bem melhor do que a esquisitice de ontem. Meu coração se aperta ao vê -la. Na verdade, minha terapeuta acha que eu deveria tentar me aproximar mais de crianças, mas simplesmente não posso. Não consigo. Principalmente porque aquela menininha me lembra a minha menininha. Cheia de vida e com a língua afiada. Quando a vi conversar tão cheia de atitude, aquilo me acertou em cheio.
- A noite foi boa heim?- Blake cantarola.- não o culpo por me tratar com sarcasmo. Fui uma vadia com ele e sua sobrinha ontem.
- Você nem imagina.
- Ela vai ficar aqui, ok? - ele afirma enquanto me lembro da conversa ridícula que tive com ele ontem, pedindo que Ava não me atrapalhasse.
- Tá tudo bem, Blake.Seguimos o dia adiantando o projeto e eu estava bastante satisfeita com meus avanços. Tinha terminado o quadro da capela cistina, no qual levei dois meses para terminar. Agora, tinha praticamente o mesmo tempo para terminar os outros, mas que apesar de imensos, eram mais simples. Blake estava do lado de fora quando vi Ava me encarar. Ela tinha soltado seu cabelo ruivo e ele estava caindo pela metade em seu rosto.
- Olá. - digo sorrateiramente.
- Olá. - ela retribui. - você não conversa muito né? - eu sorrio.
- Sou normal. Você que é muito tagarela. - ela ri.
- Minha mãe fala que eu falo mais que a Gina.
- Gina?
- É. O passarinho da minha avó Della. Ela fala com a gente.
- Um papagaio?
- É ela. Chama Gina.
- Então você fala mais que a Gina? - ela ri como se tudo oque eu falasse fosse cômico. - ela disse pra mim que é. Que eu falo muuuuuuito mais.
- Assim é melhor. Tenho certeza que você tem muito mais amigos do que eu tenho. - ela reflete sobre aquilo e logo deixa o assunto morrer, e como toda criança, começa o próximo tópico imediatamente.
- Você pinta muito bem. Minha professora disse que eu também pinto muito bem, mas ela não conhece você.
- Você acha que ela iria se espantar?
- Nossa! Muito. Grace, ela ia amar você. - Ava pronúncia meu nome embolado e eu não consigo achar mais fofo. O aperto no meu peito ainda está ali.
- Eu estou com fome. Meu tio disse que hoje ainda não tenho aula. Vamos comer? - olho para todo o meu trabalho ainda secando, algo que eu não poderia mexer ainda hoje. Estava tranquila, e eu poderia facilmente sair mais cedo hoje e ir com ela até lá, mas eu não sei se quero. Fazer coisas com uma criança com a exata idade que Maddie tinha, era como repetir um passado no qual não vivo mais. Não quero me torturar me lembrando o quanto era bom ter alguém que dividisse minhas simples tarefas do dia a dia como lanchar no meio da tarde. Ava está me encarando com seus olhos grandes e castanhos como o do tio.
- Grace?
- Sinto muito. Eu não posso sair agora. - seu olhar fica terrivelmente triste.
- Tá.
- Ava, nós vamos comer assim que eu terminar, ok? - a voz de Blake soa ríspida atrás de mim. Ele me ouviu negando um simples lanche? Sou patética.
- Mas tio, você já disse isso tem mais de vinte horas! - ele ri.
- Eu prometo que demoro menos que vinte horas, já estou quase terminando. - ele sai e Ava se senta novamente com um caderninho de desenhos. Ela tinha mania de suspirar a cada cinco segundos quando estava entediada e eu secretamente ria dela durante o dia, ouvindo seus suspiros.
- Você nunca come?- ela insiste.- Não vejo você comer Grace.
- Como, mas as vezes esqueço de comer por causa do trabalho.
- Esquece de comer?- ela solta uma gargalhada gostosa- Quem esquece de comer, Grace?
- Pelo jeito eu. - Nós duas rimos uma pra outra e volto a organizar minhas coisas. Blake sai alguns minutos depois e a chama para ir embora. Ele não se despede, e apesar de eu não ser tão antenada em mínima educação, sugiro que ele esteja me detestando nesse momento. Eu também faria o mesmo.
Assim que chego em casa, corro cerca de uma hora pelo bairro com Lolita. Tinha o hábito de correr diariamente desde o colégio, mas depois da morte de Maddie e o divórcio, só tive forças para ir até a terapeuta, que por sinal, ainda vou. Raramente, mas vou. Voltei a correr tem cerca de dois meses, e apesar do tempo parada, meu corpo ainda se lembra de todos os anos que repeti esse mesmo costume. Assim que volto pra casa, tomo um banho e me sento em frente ao notebook às nove,para fazer vídeo chamada com Evan.
- Olá. - sua barba está maior e apesar da imagem meio pixelada, dá pra ver um pouco de olheira. - como a futura Sra. Jenkins passou os últimos dois dias? Você e Blake estão se dando bem? - faço uma legítima careta.
- Não sei se " bem" é a palavra certa. Mas digamos que ainda não pensei em colocar cicuta no seu copo de água. - Evan ri alto.
- Você é difícil, Hayes. O que está havendo?
- Bom.. Blake está levando sua sobrinha pra lá. - ele pensa por alguns segundos e sorri como se uma lâmpada se acendesse em sua cabeça.
- Ava Blake?
- A própria.
- O que tem de errado? Ela fez algo? Geralmente Ava é melhor do que muito adulto.
- Eu sei. Não é que eu não goste dela Evan... só não.. você sabe.
- Não quer ficar perto dela. Ok. É justo, ela é uma criança incrível e talvez te lembre da sua criança incrível, acontece.
Evan e eu nos conhecemos três meses depois da morte de Maddie. Foi repentino, mas na minha cabeça fazia todo sentido. Meu marido me deixou um mês após a morte dela, mas eu sei que ele já havia desistido de mim no instante em que Maddie morreu, porque no hospital, ele já me culpava por isso. Naquele instante eu já sabia que meu casamento havia morrido. Evan me conheceu na terapeuta, ele estava na sala de espera não para ser atendido, mas porque estava esperando sua irmã também destroçada como eu ser atendida. Eu estava na pior fase da minha vida, mal tinha ânimo para tomar banho, Aubrey me arrastava pros lugares que eu deveria ir, mas eu me limitava a ir apenas na terapeuta. Eu sempre o via na sala de espera e um dia ele estava folheado a revista do consultório e imagino que para puxar assunto comigo, comentou sobre um quiz que estava fazendo, Então ele lançou uma " você tem medo de algo? Eu acho que não tenho medo de nada" me lembro que bufei e decidi ignorar. Ele se sentou do meu lado e apontou pra revista " responder não vai te custar nada, sabia?"
" nem melhorar nada. Obrigada " ele era engraçado, todos os dias tentava puxar assunto comigo, e eu o ignorava, só queria ficar sozinha na minha própria fossa. Até que um dia, eu respondi a pergunta aleatoriamente." Tenho medo de dormir sozinha." Evan levantou a cabeça em minha direção tentando entender oque eu estava dizendo, e quando entendeu que eu estava respondendo uma antiga pergunta, ele me deu o sorriso mais bonito que eu já tinha visto. Todos os dias ele tentava falar mais e mais comigo, até que decidi dar uma chance, eu me sentia muito sozinha. Ele foi até meu apartamento e conversamos por horas. No fim da noite pedi que ele ficasse no sofá, porque eu não queria ficar sozinha mais. Ficamos cerca de quatro meses juntos sem fazer sexo, mas ele dormia na minha cama todas as noites e conversava comigo até eu cair no sono. Com cinco meses, eu decidi que tentaria me abrir pra ele e ele já estava praticamente morando na minha casa. Ele já sabia de todas as merdas que se passaram na minha vida e decidiu ficar. Não estranhei quando ele me pediu em casamento com sete meses de enrolo, já que quase vivíamos juntos. Encontrar Evan foi minha salvação, porque eu já me sentia perdida desde o dia em que minha vida virou de cabeça pra baixo.
- Ele acha que sou má com ela, tenho certeza.
- Você não é má. Ele vai ver isso, só dê tempo a você mesma pra estabelecer essa proximidade com ela. Você tem um trauma Grace, não é sua culpa.
- Eu amo você, dá até raiva do tanto que amo você, Evan Jenkins.
- Eu também amo você Grace. Pega leve com Blake. - ele ri.
- Tem mais uma coisa.
- Diz..
- Ontem entrei no quarto.- ele faz um silvo baixo.
- Grace..
- Eu sei. Só.. era aniversário dela,sabe? Me senti mal em deixar ela lá sozinha. - me arrependo do que eu digo, assim que a frase sai. Eu falei como uma maluca, coisa que não sou.- Eu sei que ela não está lá ok? Não sou doida. Só.. ela é mais real lá dentro. O cheiro, as coisas..
- Sua terapeuta disse pra você evitar isso. Na verdade, esse quarto não deveria existir mais, Grace.
- Não é uma possibilidade que aquele quarto seja desfeito.- falo rispidamente porque é a verdade. Dane-se se atrapalha meu processo de cura.
- Ok. Só tenta não ir atrás dos seus fantasmas, ok?
Conversamos sobre o dia dele, sobre Lolita que está sentindo sua falta como ninguém, conversamos sobre besteiras e sobre a série que ele estava vendo porque eu indiquei. Falamos por quase duas horas até que minhas pálpebras começam a pesar.
- Evan, estou quase dormindo sentada. Vou nessa ok? Te encontro amanhã às nove? - ele ri.
- As nove em ponto. Amo você, Grace.
Desligo com ele e me preparo pra dormir. É minha segunda noite sozinha e acho que tudo bem. Repito mentalmente:Vou ficar bem. Preciso ficar bem.Na sexta feira, as três da tarde, eu já havia terminado o que eu me planejei fazer no dia. Estava livre para ir embora, e assim que troquei minhas roupas sujas de tinta e sai do banheiro, Ava estava na porta me esperando com os braços cruzados e um olhar desconfiado.
- Tudo.. bem? - pergunto desconfiada.
- Tá.
- O que você tá fazendo parada aí?
- Agora você pode comer na padaria comigo, Grace?
- Você tá com fome de novo?- pergunto rindo.
- Tô. Meu tio disse pra eu não irritar você mas eu to com fome, sabe.
- Sei.
- Você já acabou tudo não é?
- Por hoje sim.
- Então... a gente pode ir lá? Eu tenho umas moedas que minha mãe me deu. - eu não posso dizer não para Ava, e nem vou. Blake estava no telefone quando eu fiz sinais explicando que iria sair com Ava.
Nós duas andamos até a padaria na esquina, que tinha algumas mesinhas do lado de fora e servia frozen iorgute. Ava me deu a mão sem que eu pedisse, e tagarelou até chegarmos lá sobre mil assuntos, mas principalmente sobre o Sr. Pelado, que pelo que entendi é o gato sem pelos de Blake.
- O nome dele não é esse não é?- ela ri.
- É Odin. Mas ele se parece muito mais com Sr. Pelado. - após a breve explicação, ela continua o assunto anterior -Aí minha mãe gritou " Odin sai de cima da minha lasanha"- Ava ria como Blake, seu sorriso era contido mas fazia barulho. - ele pulou em cima do meu prato ontem. Mas tá tudo bem, eu não queria comer mesmo.
Assim que chegamos, ela tagarelou mais sobre o menino que ela brigou, sobre Odin ser desobediente e sobre Blake fazer seu jantar todas as noites. Ela come o frozen Iorgute com morango e eu com pêssego. Depois de quarenta minutos, voltamos caminhando até a Catedral. Assim que entramos, Ava ainda está cantarolando a canção do filme que ela viu ontem e Blake me dá um sorriso legítimo.
- Vou no banheiro tá?- Ava avisa. Assim que ela sai, Blake começa.
- Olha só, alguém aqui desistiu da careira de bruxa de livros infantis.
- Não sou uma bruxa. Só.. não simpatizo com crianças. - minto. Seu sorriso se esvai e ele fica rígido.
- Ah. Então é isso? Você não gosta de crianças no geral. Entendi.- ele se vira dando de ombros, visivelmente me julgando mentalmente de todas as formas possíveis.
- Você não me conhece, Blake. - digo tão ríspida quanto ele. Escuto sua risada sarcástica, ainda de costas.
- Do pouco que já vi, nem quero. Vamos nos ater ao que viemos fazer aqui ok? Acho que será melhor assim.
- Você não me conhece.- repito.
- Olha, Grace, - seu corpo fica rijo, ele se volta pra mim e seu tom é duramente seco- Você pode e tem todo o direito de não gostar de crianças, só não precisa tratar Ava mal. Ela já aguenta muita merda, ok? Hoje foi o último dela aqui, fica tranquila. - ele se vira e eu quero explodir de raiva. Não sou esse monstro. Me sinto horrível pelo que ele disse de Ava, eu estou maltratando uma menininha que nada me fez?
- Ethan. - chamo de forma quase inaudível. Me espanta ele olhar de volta.-Você não me conhece, então não aja como se eu fosse a personificação do mal. Passei mais merda do que você pode imaginar. - dito isso, me viro e saio de lá. Ava ressurge e me dá um tchau sorridente. Aceno em retribuição e sigo pensando se existiria um dia em que o passado não tornasse o meu presente uma merda.
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Questão de tempo
Chick-Lit" É preciso acreditar que depois das coisas ruins sempre vêm as coisas boas...ou pelo menos, deveria ser assim" Grace Hayes, 26 anos, uma perda, uma mente brilhante , noiva de Evan Jenkins e dona de um ego totalmente inabalável. Ethan Blake, 27 ano...