Antes de tudo, veio esse apito. Esse barulho ensurdecedor em meus ouvidos, afastando toda a paz que houve um dia. Antes do ar, das cores, da consciência, veio esse maldito apito.
E é ele que ouço antes mesmo da realidade, a qual chega para mim como uma sequência de tapas na cara. Puxo o ar para meus pulmões no mesmo instante que arregalo os olhos, na expectativa de que eles se adaptem logo ao ambiente ao meu redor. Olho por cima do ombro a tempo de ver um Hunter desacordado com seu corpo de forma protetora acima do meu.
— Hunter! – grito, mas não me ouço direito.
Estou parcialmente surda.
Da mesma forma que eu, ele acorda de súbito e vejo o esforço que faz para se encontrar.
Estamos todos perdidos.
Saio debaixo do seu corpo e fico de pé com dificuldade. O mundo está silencioso a minha volta, ao mesmo tempo que se sacode levemente de um lado para o outro, e não ouço nada além desse maldito apito que me traz uma forte dor de cabeça. Olho em volta e vejo um campo de batalha após a guerra. Vejo corpos jogados para todos os lados. Vejo resquícios de um incêndio. Vejo o que um dia foi uma fábrica. Vejo destroços para todos os lados. Vejo civis, soldados e inimigos mortos. Pessoas que sei que nunca mais respirarão na vida. Pessoas que sei que ficarão feridas para sempre. Pessoas que sei que estão marcadas para sempre por essa guerra.
E é o ódio que sinto por ver isso que me dá forças para continuar. Forças para pegar minha arma. Forças para dar todos os passos que preciso e atirar em cada inimigo que aparece em minha frente. Procuro cada brasão e atiro em sua direção. Procuro qualquer sinal de um traidor vivo. Procuro qualquer coisa que se mova e tenha esse maldito brasão no uniforme.
E eu
Não Paro.
Até que não há mais ninguém para matar.
Paro no meio do aglomerado destruído e olho em volta, procurando qualquer coisa que possa fazer com que eu me sinta melhor. Que me sinta menos pior. Acabei de matar mais de vinte homens, mas isso não me traz nenhum conforto.
Caio sobre meus joelhos e perco a visão com a cena a minha volta. Não há mais som de tiros nem de gritos nem de protestos. Não há mais nada além de silêncio.
Do silêncio e do enorme vazio em meu peito.
— Lore. – alguém me chama, e demoro mais que o necessário para erguer os olhos e ver Hunter se abaixando a minha frente. Sua voz parece longe e abafada, assim como todo o mundo. – Está ferida? – seus olhos são como lupas e me examinam de cabo a rabo.
Suas palavras me geram uma onda involuntária, e antes mesmo que possa notar, já ergui a mão até a cabeça e meus dedos já encontraram o líquido espeço que se acumula em meu couro cabeludo, um pouco acima da têmpora direita. Sei que é sangue antes mesmo de afastar os dedos, mas Hunter vê quando o faço, e logo estou sendo erguida e carregada por ele para os carros tanques.
Tento manter meus olhos focados nele e somente nele e tento me concentrar em seu corpo perto do meu e no seu cheiro de suor e fumaça, mas é impossível. Vejo corpos queimados e sangue para todos os lados e cheiro de carne queimada e peles dilaceradas e o fim do que um dia foram vidas.
Quando enfim paro, é para ser erguida e sentada na parte de trás de um tanque, os quais estão sendo usados para atender os feridos. Mantenho meus olhos focados em Hunter a minha frente e em como suas mãos procuram as ferramentas necessárias para cessar o sangramento em minha cabeça.
— Você está sangrando. – ouço alguém dizer ao longe, e quando olho para o lado, vejo Clara sentada do mesmo jeito que eu. Vejo também que ela foi atingida por algo bem forte, pois o material do seu uniforme sobre o braço esquerdo foi dilacerado, e através dele, vejo uma bela feriada exposta.
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LIGHTS - Livro II
Fiction générale"Fui torturada a vida inteira. Experimentei vários tipos de inferno. Mas nenhum se compara a esse." Depois da missão falha na Capital e descobrir que tem um irmão gêmeo, Lorely, Hunter e toda sua equipe da Resistência se encontra prisioneiros do Sup...