Eu não sei na verdade quem eu sou

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"Eu não sei na verdade quem eu sou
Já tentei calcular o meu valor
Mas sempre encontro sorriso e o meu paraíso é onde estou
Por que a gente é desse jeito
Criando conceito pra tudo que restou?" O Teatro Mágico - Eu Não Sei Na Verdade Quem Eu Sou



Jaime relaxou o rosto à medida que eu voltava a me sentar, fazendo o mesmo com a pressão de seus dedos em volta de meu pulso. Ele suava frio, mais que o habitual. Tremia ligeiramente, embora tentasse em vão firmar os dedos de forma que ninguém percebesse. Seu rosto voltou a se franzir poucos segundos depois, voltando à raiva de sempre.

— Michael? – Milena replicou em um tom de voz muito receoso, fazendo-me lembrar que Martini não gostava de conversar com ela sobre seu transtorno e usava do sigilo médico para que a mãe não soubesse muito de si, apenas o suficiente para compreender seu quadro superficialmente. Aparentemente, sequer o nome das outras personalidades ela sabia. Vivian virou-se para explicá-la melhor, mas tomei sua frente.

— Um dos alter-egos dele. –murmurei. Jaime olhou para mim, sorrindo torto e apertando os braços da cadeira com a ponta dos dedos. Estava mais pálido que o saudável. — Michael é um dos superiores.

— Superiores? –Milena perguntou novamente. Dra. Vivian deixou o bloco de notas sobre o tabuleiro, pronta para explicar o que acontecera.

— Personalidade superior é o nome que adotamos para nos referir a Michael e Jim, as duas identidades que aparecem com mais frequência. –olhou de esguelha para Jaime, fitando-o preocupada. Milena fez o mesmo, completamente confusa com a situação.

Não conseguíamos culpá-la. Por muitos anos achou que eram somente colapsos de raiva e mudança súbita de humor quando eles surgiam. Também nunca conseguira entender os lapsos de memória que aconteciam frequentemente, em todos os momentos em que Jaime deixava ser controlado por todos os outros cinco. Michael sempre aparecia primeiro, sendo a identidade que confrontava os assuntos familiares que ele não conseguia. Era agressivo ao contar tudo. Sempre se irritava por pouca coisa. Contava sua história de um modo sincero, mesmo envolta de muita penumbra. Em seguida, Victor surgia e contava a mesma história de uma perspectiva diferente, com pensamentos e opiniões divergentes. Depois David, Jim e Mark tomavam de conta. Em momentos completamente diferentes e rápidos. Mal podíamos perceber quando um passava para o outro. Ficavam oscilando. Tudo muito confuso.

— Amélia, pode levar ele para dar um passeio? –Vivian pediu-me com um peso no olhar, tão comovente como um filhote de gato. Após olhar também para Milena, assenti com um acenar de cabeça.

— Vamos, Michael? –pedi. Ele encarou as duas profundamente, sem mover um músculo facial sequer. — Por favor.

Toquei em seu braço. Ele virou-se para mim, confuso e desatento. Alguns segundos foram o suficiente para que ele estendesse a mão para mim, levantando-se de sua cadeira sem voltar a olhá-las.

— Por que elas insistem em falar sobre esse assunto? –indignou-se, andando em passos largos e pesados pelo corredor de acesso aos dormitórios. Ele me arrastava junto.

— Michael, pare. –pedi. Ele firmou os pés subitamente, fazendo-me chocar contra suas costas. — Você precisa se acalmar.

— Eu estou calmo. –sussurrou. Contornei seu corpo, ficando frente a frente com ele, podendo enfim analisá-lo atentamente.

— Você está uma pilha de nervos. –segurei seu rosto com ambas as mãos, forçando-o abaixar seu olhar para me fitar também. — Michael, respire fundo.

Ele colocou suas mãos sobre meu quadril, soltando o ar pela boca. Piscou algumas vezes, muito rapidamente, assim como fazia para se adaptar à luz. Suas pupilas retraíram, voltando ao normal. Seu olhar confuso prevaleceu mais uma vez.

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