Quase sem querer

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"Quantas chances desperdicei
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo mundo
Que eu não precisava provar nada pra ninguém

Me fiz em mil pedaços pra você juntar
E queria sempre achar explicação pra o que eu sentia
Como um anjo caído fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira" Maria Gadú - Quase Sem Querer



À medida que Tom e eu caminhávamos pelas calçadas cobertas de uma fina camada de neve, mais gélido o tempo decidia ficar. Optamos, em conjunto, seguir para o local de filmagens e nos abrigarmos em seu trailer, mesmo que, em todos os sentidos possíveis que imaginava, minha mente gritasse 'nem pense nisso, garota'. Sentia-me levemente embriagada também, mas, felizmente, não a ponto de me equiparar a Tom.

Esse, com certeza, estava bem ruim.

Não tanto como na outra noite, mas continuava ruim. Cambaleando, falando frases soltas em certos momentos e sorrindo para o céu enquanto se equilibrava em meus ombros. Qualquer um que passasse na rua, sem sombra de dúvidas, olharia para nós e gritaria 'vagabundos bêbados!' sem pensar duas vezes. O que não era tão mau, se eu fosse parar para analisar nossa situação. Um ator mundialmente famoso fora de si acompanhado de uma desequilibrada mental. Sozinhos, debaixo de uma nevasca. Saindo de um karaokê.

Ao passarmos por uma pequena cafeteria 24h, Tom pediu por uma bebida quente. Agradeci mentalmente por isso. Enquanto buscava aconchego entre as opções de café, observei-o sentar em uma cadeira bem afastada, onde a luz tênue das lâmpadas quase não o alcançava, permanecendo bem próximo ao corredor de acesso à parte interna do lugar. O que ele tem contra cadeiras perto de vitrines? O lugar estava deserto. Nem mesmo uma alma para nos flagrar além de uma criança que lia atentamente um livro na mesa ao lado de Tom. Provavelmente filho da atendente que havia sugerido que eu escolhesse por cappuccino.

— Espero que goste disso. –entreguei o copo com tampa para Tom, que agradeceu com um sorriso. Sentei-me ao lado oposto à sua cadeira, ficando lado a lado com o pequeno leitor. — Cuidado com a temperatura, Shakespeare. –alertei antes que ele selasse seus lábios nas bordas do recipiente. Ele rolou os olhos, abandonando a bebida sobre a mesa.

— Você é pior que a minha mãe. –reclamou.

— Você bêbado se comporta como uma criança. –resmunguei. O menino leitor ergueu os olhos por cima do livro, me encarando aparentemente ofendido com minha última comparação. — Desculpe.

— Meus amigos e eu lemos Hamlet. –balançou o exemplar em sua mão, desafiador. — Seu amigo faz isso?

— Ele faz. –falei. — Não me ouviu o chamando de 'Shakespeare'?

— Poderia ser qualquer coisa. –deu de ombros. — Shakespeare ou Shakesbeer? –indagou em seguida, sorrindo entusiasmado.

— Você também com esse lance de Shakesbeer? –suspirei.

— 'Peare' parece 'beer'. –deu ênfase em cada palavra. — O que é interessante, porque é uma bebida e ele está...

— Finalmente alguém que me entenda! –Tom exclamou. Imediatamente, arrastou sua cadeira para o lugar vazio em frente a nós dois e se sentou, cumprimentando o garoto com a mão direita.

O menino subitamente deixou sua boca se abrir num espanto no momento em que o ator atingiu o alcance da luz que o auxiliava na leitura. Tom sorriu simpaticamente, evitando se aproximar o suficiente para que ele sentisse o cheiro de álcool em seu hálito.

— Eu acho que ele congelou. –comentei. — Essa é a reação que você habitualmente causa, Tom?

— Tome como exemplo a sua amiga aliciadora. –estreitou o olhar para mim momentaneamente, voltando a fitar o garoto logo em seguida. — Qual é o seu nome, garoto? –perguntou.

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