"Dê uma volta antes de eu queimar, não importa para mim
Como uma cobra, eu acordo e asso isso, isso não importa para mim
Eu posso foder ou eu posso lutar, isso não importa para mim
Porque é sempre assim e eu sou sempre o mesmo
Você não é um homem, mas toda a gente dizia que não importava para mim
Pés sujos na minha poltrona, mas não me importa
Quebre meu coração, me rasgue, não importa para mim, não, não
Eu coloquei um brilho no seu olho, não importa para mim" Kings of Leon- Don't Matter
Abaixei minha cabeça no primeiro sinal de olhos retorcidos para me encarar enquanto pegava o elevador. O presente da segunda-feira começara mais cedo do que eu imaginava. Sentei-me em minha cadeira e analisei a pilha de novos trabalhos para se revisar, enchendo meu corpo de uma falsa animação que teria de aguentar até o fim do expediente. Mal conseguia encarar o sofá de espera do andar sem encher minha mente das lembranças da última noite no prédio, entregando-me, mais uma vez, para Jaime. E como desde então não conseguia acreditar em minha própria força de vontade.
Trícia chegou animadíssima, se controlando bastante para não entrar no meio das fofocas sobre minha reconciliação com Jaime, que agora, virara matéria de frente de capa de jornal dos funcionários –em um modo quase literal- nutrindo várias teorias absurdas sobre a razão pelo qual havíamos voltado. Na verdade, quando estávamos juntos, nossa relação nunca fora de caráter público. Certo dia algum colega de trabalho nos viu de mãos dadas na rua e começou a especulação infernal, que se estendeu ainda mais quando outra pessoa nos encontrou na fila do cinema, para a estreia de The Day of the Doctor. E novamente fitavam-me com olhares que, comparados, eram exatamente iguais. Recheados de malícia, curiosidade, alguns mais comprometidos desviavam-se quando virava meu pescoço para encará-los de frente. Outros, mais descarados, esboçavam um sorriso repleto de desdém e falsidade. Por saberem da crise da empresa e sobre a demissão de muitos dos funcionários, logo associaram que voltei a deitar-me com Martini para não perder o emprego. Mal sabiam que não era o meu emprego pelo qual andava zelando. Era o da garota atrapalhada da mesa em minha frente, a doce e amável Trícia Armstrong, recentemente formada na Universidade e sozinha no país. Ao contrário de mim, Trícia não podia se dar ao luxo de perder o emprego. Eu, nos melhores dias, conseguiria voltar a ser a garçonete do antigo Pub que trabalhava, já minha querida amiga, não tinha a mesma versatilidade.
Errando a maioria das palavras que digitava, esperava, impacientemente a chegada de Jaime no prédio. Mas, logo quando ansiava por sua chegada, ele demorava a vir. O homem era como um dilema em forma de gente, sempre aparecia em sua vida quando não precisava e sempre sumia nas horas em que mais necessitava. Sabia ler as necessidades de uma pessoa sem nenhuma dificuldade, tinha um lado sombrio muito incompatível com seu lado de luz, uma vez que podia imaginar muito bem em que tipos de negócio Martini trabalhava para conseguir erguer sua empresa em meio a uma das piores crises do país. E como ele exercia seu lado sombrio nesse assunto profissional. Tinha medo de ir mais a fundo e perguntar, entretanto, se ele estava me submetendo a seus encantos para me puxar junto dele ou lhe oferecer cobertura, precisava saber em que exatamente estava me metendo.
Tive tempo de adiantar algumas páginas até Jaime chegar. Como sempre, saiu do elevador portando uma expressão séria, ajeitando sua habitual gravata italiana e abotoando os botões de seu paletó, desta vez, preto. Seu cabelo negro mal se mexia, embora Martini andasse sempre despreocupadamente, bem diferente de sua personalidade. Aparentava sempre estar em uma festa de gala, assim chamando a atenção de todos os pares femininos de olhos do andar. Passou pelo corredor em frente à sala e seguiu pelo caminho retilíneo até o elevador particular que o levava até a cobertura, onde seu mundinho fechado o impedia de ter contato com os mortais. Levantei-me sem me importar com todos os olhares que recaíram sobre mim, prontos para acompanharem meu trajeto até o mesmo elevador de Jaime. Ninguém me impediu, nem mesmo os seus seguranças. Eles nunca ousariam me impedir, caso contrário, enfrentariam um chefe bem irritado mais tarde. Apertei o único botão, encarando as paredes de vidro sentindo um leve mal-estar por permanecer de pé em um piso transparente, encarando a altitude em que estava naquele momento. Jaime sempre gostara de se sentir no topo do mundo e, por isso, tinha o prazer de ter uma vista privilegiada de toda Londres. Sua porta estava entreaberta, possivelmente me aguardando, sabendo que não iria tardar a vê-lo. Como sempre, muito prepotente.
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Lanterna dos Afogados
Literatura FemininaSe adequar à sociedade e aos padrões neurotípicos jamais foi uma tarefa palpável para Amélia, que carrega sobre seus ombros fardos demais para se suportar. Após o término do relacionamento mais intrínseco que tivera e alimentando a certeza que nunca...