89º Capítulo - Clara

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_ Ela não parece sentir dor agora... – comentei, observando o rosto sereno de minha mãe enquanto caminhava pelo quarto na direção da cadeira mais próxima para, enfim, descansar o peso de meu próprio corpo.

Mamãe dormia profundamente, inerte, acompanhada apenas pelo leve sobe e desce de seu peito, indicando uma respiração tranquila e compassada. Um pequeno caninho, ligado a uma bolsa de soro idêntica à usada no pronto-socorro do parque, prendia-se a seu braço e mostrava-se como a única coisa de diferente em sua imagem vista momentos atrás, além da camisola verde e horrível que substituíra suas roupas.

_ No momento, sua mãe está sob o efeito dos medicamento que comentei. – lembrou Heitor próximo a mim, procurando também um lugar para se sentar. – Entretanto, há grandes chances de que, mesmo após o término do efeito, sua mãe esteja livre das dores.

_ Contanto que faça repouso? – questionei enquanto acomodava-me ao assento extremamente confortável e acolchoado.

_ Exatamente. – um sorriso tranquilo invadiu o rosto do médico.

Com calma, passou por mim e puxou uma das cadeiras de plástico que estava escondida num dos cantos do pequeno cômodo por inteiro branco.

Observei seus movimentos enquanto recordava a primeira vez em que estivera ali.

­_ Sangue, desmaio, pontos, um corte... – o ouvi sussurrar. – Lembra de mais alguma coisa?

Encarei-o, estupefata.

_ Como sabia que eu estava lembrando daquele dia?

_ Seu olhar se tornou aéreo de repente. – respondeu, dando de ombros. – Eu me recordo claramente do desespero de seus pais chegando aqui.

Uma risada sincera me escapou a garganta.

_ Mas, acredite, hoje conseguiu ser pior. – comentou brincando comigo, munido de uma expressão travessa no rosto. – Afinal, a desesperada era você.

Fingi ficar brava.

_ Desesperada? Eu? O que quer dizer com isso? Que entrei gritando no pronto-socorro, clamando por uma maca, e só parei quando você apareceu?

Ele riu alto e, em seguida, focalizou minhas mãos.

_ Com licença. – pediu, segurando meus pulsos e virando minhas palmas para cima. Estava procurando a cicatriz do corte. – Quase imperceptível, hein? O médico que costurou sua mão deve ser mesmo muito bom.

Assenti, rindo.

_ É, ele é sim.

_ Sabe do que mais me lembro daquele dia? – questionou baixando o tom de voz e fitando meu rosto.

_ Do que?

_ Que me pediu para sorrir. - no mesmo instante, senti as bochechas em brasas, ardendo pela vergonha. – Você mudou muito, Clara... Digo, está mais forte, algumas novas cicatrizes... E parece mais madura.

Sorri.

_ Aprendi muito com estas férias na se... – mordi o lábio. Quase falo demais! – No interior.

_ Está ainda mais bonita. – o ouvi sussurrar, baixando os olhos.

Desviei o olhar e foquei a janela, sorrindo.

_ Obrigada. Mas não fui só eu que mudei. Você parece muito mais experiente que da primeira vez em que estive aqui.

_ Ah! É que fui efetivado. Não sou mais o estagiário do lugar. – novo sorriso iluminava seu rosto no momento em que o encarei.

_ Uau! Isso é uma novidade muito boa! – exclamei. – Meus parabéns, doutor efetivo.

Ele riu.

De repente, alguém bateu na porta. Heitor levantou para abri-la, mas não foi necessário. Logo papai invadiu o cômodo por conta própria.

_ Está tudo bem? – perguntou sem nem pedir licença, caminhando na direção da cama de mamãe.

_ Sim, tudo sob controle. – respondeu o médico.

_ Já fizeram a ultrassom? – quis saber meu pai, tocando o rosto de sua esposa ternamente.

_ Mamãe ainda não acordou, pai. Estamos na mesma situação de quando você saiu: apenas esperando. – expliquei. – E o carro?

_ Não tive problemas para recuperá-lo, graças ao documento que o doutor Heitor me deu. Bastou entrega-lo e assinar o boletim da delegacia.

_ Delegacia? – escutei uma voz fraca. Mamãe acabava de abrir os olhos.

_ Querida! – exclamou papai, dando-lhe um beijinho na testa e abrindo imediatamente o sorriso mais puro e verdadeiro que já vi.

_ O que estavam falando sobre delegacia? – insistiu ela com a testa franzida, correndo os olhos pelo rosto de cada um de nós, presentes no quarto.

Encarei Heitor a tempo de vê-lo, disfarçadamente, fazer que não com a cabeça. Seria pior assustá-la com isso, sendo que, agora, já estava tudo bem...

_ Nada, mãe. – coloquei-me a frente de papai e afirmei com firmeza. – Como está se sentindo? A tontura ainda te incomoda?

Ela pigarreou um pouco, como quem iria protestar, mas desistiu.

_ Estou bem melhor. Me sinto mais forte, ainda que não completamente... – uma careta enfeitou seu rosto. – O enjoo ainda está aqui.

Reprimi um sorriso e encarei papai.

_ Será possível? Acho que Heitor acertou no palpite. – comentei.

Os dois homens assentiram. Meu pai parecia realizado, embora escondesse, e Heitor exalava orgulho.

_ Que palpite? – quis saber mamãe.

_ Lucy, - interveio o médico, aproximando-se da cama. – o que acha de fazermos uma ultrassom?

_ O quê? – ela exclamou, pasma.

_ Não temos certeza, amor, mas uma das hipóteses do doutor é que esteja grávida. – explicou papai.

_ Não! – sua voz saiu fraca, assustada. – Não, é impossível! Vocês... Vocês sabem!

Desesperada, minha mãe me encarou. Entretanto, não tive respostas para oferecer. Estava tão confusa quanto ela. Limitei-me a baixar os olhos.

_ É apenas a "prova dos nove", senhora Lucy. – afirmou Heitor. – Para desenvolvermos outros exames, temos que garantir a não existência de um bebê.

_ Mas... – se opôs mamãe. – Mas eu garanto que não há bebê nenhum!

_ Garante? – insistiu papai, a encarando com o cenho franzido.

_ Bem, não, mas...

_ Não? – repetiu o doutor, fazendo-a refletir sobre isso para aceitar a ultrassom.

_ Ícaro, só pode estar louco. Sabe tão bem quanto eu que isto é impossível! - protestou ela, teimosa.

Encarei meu pai.

_ Desde que sua avó se envolveu com um do... – deteve-se, lançando um olhar rápido a Heitor. – Do outro lado, absolutamente nada é impossível.

Engoli em seco.

_ Mas... – tentou minha mãe, insistindo em teimar mesmo que sem argumentos a seu favor, mas foi interrompida.

_ Traga os aparelhos, doutor. – pediu meu pai. – Vamos fazer esta ultrassom.

O Ciclo de Sangue - A Escolha da Herdeira (livro 02)Onde histórias criam vida. Descubra agora