Capítulo 39 ........... E Lá Vamos Nós

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Cleonice Narrando

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Assistir Laura dirigindo era sem dúvida uma das tarefas mais terapêuticas que eu já experimentei. A forma como ela inclinava a cabeça e franzia o cenho para o retrovisor, o modo como tamborilava os dedos no volante ao ritmo de alguma canção que soava em sua cabeça enquanto aguardava o sinal abrir, a maneira que seus lábios formavam um biquinho distraído e às vezes até frustrado imersa em seus próprios pensamentos. Tudo nela era encantador para se admirar. Diferentemente de mim, ela não se estressava tão facilmente no trânsito, e sempre parava quando via algum pedestre. Ela não se incomodava tampouco em ceder a vez quando algum apressadinho ligava a seta com o intuito de ultrapassá-la. Era tão serena, que a mera visão dela simplesmente me fazia sorrir.

A conversa no carro se resumiu em boa parte sobre o nosso trabalho, apesar de eu ter deixado uma parte crucial de fora. Parte esta que estava me roubando o sono desde a última ligação que recebi. Ela me relatou um pouco sobre a reunião tediosa em que estava antes de vir me encontrar – o que me deixou um tanto chateada, afinal a última reunião em que estivera fora da agência se comprovou ofensiva – e eu, o meu desentendimento com um cliente, que tinha em mente que eu poderia livrá-lo de qualquer merda que fizesse na empresa.

Para aliviar um pouco o tema pesado entramos em uma animada conversa sobre as expectativas de hoje a noite. Finalmente conheceríamos os novos integrantes da família e eu não poderia estar mais empolgada. Já tinha visto um foto dos irmãos, que Dylan – escondido de Scarlatti – tirou na noite em que as crianças haviam chegado. Pareciam dois anjinhos. Kaique, com seus cinco anos, era visivelmente mais velho que a irmã de três anos, com o tom de pele mais escura que a minha, e os cabelos repletos de cachinhos negros e rebeldes. Naila era um pouco mais clara, mas a semelhança dos traços entre ambos era gritante, e seus cabelos eram mais ondulados e também escuros e longos que o do irmão. Eram tão lindos como pareciam fofos e eu não via a hora de mimá-los.

Contrariando minhas expectativas, Laura não nos conduziu até um shopping, mas sim a um lado comercial do centro que eu certamente já passei de carro mas que nunca explorei. Ela avisou que ali tinha uma das melhores lojas de brinquedos e que era mão para o seu apartamento, que seria o nosso próximo destino antes de ir até minha cobertura me arrumar e pegar Ênom. Eu tinha ligado mais cedo e, constantemente, trocava mensagens com Helena em busca de atualizações sobre a saúde de dona Moara. Até agora tudo estava bem e um pouco de alívio me inundou ao saber que ela não teve sequer uma crise desde que voltamos do hospital. Eu pedi que ela a informasse sobre sairmos para conhecer os jovens irmãos e Helena não viu problemas sobre uma movimentação, apesar do quadro em que minha mãe se encontrava. Inclusive disse que faria mais do que bem a Ênom sentir-se cada vez mais inserida na família. E eu nem preciso citar o quão animada ela ficou quando soube que Laura nos levaria. Ela sabia que nós não estávamos bem e sentia-se tão triste com isso quanto eu. Ela havia se apegado muito rápido à minha namorada e eu compreendia totalmente. Não havia como, uma vez que se conhecia Laura, querer ficar longe. Ela era cativante em todas as formas, fofa e sempre de bom humor. Era responsável por me roubar grande parte dos melhores sorrisos. Talvez por isso eu estivesse tão preocupada em tocar no assunto que traria certa tensão entre nós.

Decidi que contaria a verdade somente à noite, quando poderíamos ter uma conversa séria. Além do mais, eu não queria estragar nosso dia com mais uma possível briga ou até coisa pior. Precisava de tempo para tentar encontrar uma maneira de contar a ela que era necessário fazer essa viagem sem que ela surtasse ou tirasse conclusões precipitadas.

Após guardar o carro no estacionamento da loja que ficava ao lado, Laura pegou minha mão e nos conduziu animadamente pela calçada movimentada. Na enorme fachada do estabelecimento lia-se Ri Happy. Uma loja grande e que através das vidraças era possível enxergar vários tipos de brinquedos.

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