Capítulo 26 ........... Pendências

387 26 15
                                    


Laura Narrando

*
*
*
*
*


A semana correu que eu nem vi. Apesar de todos os acontecimentos conturbados que que sucederam meus dias e me fizeram envelhecer alguns anos, eu me sentia bastante animada, mas também aflita, enquanto me arrumava para ir à casa da minha namorada, tentando não pensar no desastre em que eu havia me enfiado.

Em resumo, na segunda à noite Cleo e eu fizemos a vídeo chamada assim que cheguei da faculdade, onde ela me contou com verdadeira empolgação que sua mãe tinha amado a ideia de conhecer os seus irmãos e amigos e que parecia muito animada e ansiosa por isso. Conversamos sobre outras banalidades, eu disse como as aulas tinham sido chatas e então engatamos em uma discussão sobre as vantagens de se usar salto versus a tênis, e eu ganhei de lavada por simplesmente dizer que tênis era mais confortável e combinavam com tudo. Ela até tentou alegar que saltos também, mas nós duas sabíamos que se fosse para ser feito uma pesquisa a maioria optaria por tênis serem mais confortáveis. Quando ela começou a me provocar, primeiro com algumas frases de duplo sentido e sorrisos maliciosos, eu soube que ela tinha ativado o seu modo letal e perigoso, mas foi somente quando ousou me mostrar como estava vestida para dormir, com uma camisola branca rendada e praticamente transparente, foi que eu decidi que era hora de irmos dormir pois teríamos que acordar cedo no dia seguinte. Cleo pareceu um pouco chateada com minha dispensa quase descarada, mas cedeu e ficou feliz quando eu a deixei saber de forma implícita que antes me ocuparia com algumas atividades manuais antes de dormir. E foi exatamente o que eu fiz, e só consegui cair no sono quando um forte orgasmo me atingiu. Naquela noite eu dormi como uma anjo, mas tive sonhos pra lá de erótico com o diabo que era a mulher por quem eu estava apaixonada.

Na terça-feira Cleonice de fato não conseguiu escapar tão cedo das audiências no fórum, e quando me mandou mensagem dizendo estar indo para o edifício, precisou fazer o retorno e ir de encontro a um dos clientes, que acabou por se meter em um acidente de carro e precisava de sua presença na delegacia.

Depois do ocorrido, onde ficou claro que essa não era a primeira vez que ela o defendia de algo similar, foi a vez de outro dos seus clientes entrar em contato, aparentemente cobrando ser atendido após ser esquecido e  então reagendado. Entre isso e alguns outros assuntos igualmente importantes, ela não compareceu a agência em nenhum momento, logo, não nos encontramos. Nossa chamada de vídeo naquela noite foi curta, pois tanto ela quanto eu estávamos exaustas e com a cabeça prestes a explodir.

Na quarta, foi impossível de almoçarmos juntas, pois meu chefe pediu para que eu o acompanhasse em uma reunião de negócios importantes em um restaurante caro. Eu até tentei negociar minha ausência com ele, mas Dylan parecia realmente preocupado com o que poderia surgir daquela reunião e precisava do meu apoio. Alegou que esqueceria que matei serviço na segunda se eu o ajudasse, e eu prontamente agarrei a oportunidade de me redimir, mesmo que isso me impedisse de passar um tempo com a minha namorada. Estava morrendo de saudades dela, mas não havia nada que eu pudesse fazer a não ser, com muito custo, desmanchar nossos planos de almoçar em seu escritório.

Cleo não pareceu muito satisfeita e até perguntou se eu queria que ela brigasse com Dylan por tal “abuso” – foram suas palavras – mas eu preferi evitar qualquer desentendimento, sabendo ainda que estava em falta com meu chefe por ter dado como encerrado o meu expediente sem o seu consentimento.

Na volta da reunião, Dylan cuspia fogo pelas narinas. O encontro tinha sido um total desastre.

Devido ao temperamento egocêntrico e escroto do cliente, as coisas se tornaram um pouco complicadas, principalmente quando ele me dava investidas nada respeitosas. Mas foi só quando ele resolveu bancar o verdadeiro canalha para cima de mim, insinuando que eu deveria fazer coisas com meu chefe quando ninguém estava por perto, que tudo deslanchou. Ele chamou de “o modo mais rápido de crescer e criar carreira para as mulheres”, e qualquer resquício de controle que Dylan estava tendo se dissolveu naquele mesmo instante. Faltou realmente muito pouco para o meu amigo e chefe não voar para cima do senhor, que tinha idade para ser meu avô, e foi preciso a intervenção de um dos seguranças do local.

O resultado foi que nenhum dos dois saiu ganhando e não houve parceria.

Eu fiquei tão abalada com a insinuação do homem e o descontrole do meu chefe, que sequer reagi na hora. Depois, tudo o que me restou fazer foi ficar brava comigo mesma por não ter gritado umas boas verdades para o babaca.

Mais tarde, quando relatei o ocorrido para Nice, ela se materializou de repente em meu escritório, adentrando o lugar feito uma tempestade. Pediu que eu recolhesse todas as informações possíveis sobre o sujeito pois iria entrar com um processo de assédio e cavar até o fundo da vida do cretino, rastreando inimigos e possíveis mulheres que talvez tenham sofrido o mesmo tipo de abuso ou coisa pior pelo patife.

Ela estava tão possessa, que não tive escolha a não ser admirar o pouco da mulher decidida e altiva que ela se mostrou ser na pose de advogada durona e namorada endiabrada. Minha excitação foi tão grande, que a agarrei sem nem me importar com o fato de que meu pequeno escritório não era assim tão isolado quanto o dela e que a porta e as paredes de vidro deixavam tudo à mostra para quem quisesse ver do outro lado.

Por mais que eu quisesse muito fazer outras coisas, obriguei-me a buscar controle e nos separar. O andar de Mídia era meio caótico e pessoas passavam por minha porta sempre que sentiam sede ou necessidade de ir ao toalete, já que meu escritório, apesar de longe das vistas dos funcionários que tinham seus cubículos por ali por perto, ficava no fundo e no caminho para tais necessidades.

Depois de recuperada – pelo menos em parte – da minha excitação, eu garanti a ela que não era preciso entrar com nenhum tipo de ação contra o homem, já que o próprio, depois que chegamos a agência, entrou em contato para pedir desculpas e tentar remarcar a reunião. Ainda que meu chefe e a Recrie & Arte não dependessem de qualquer negócio com a empresa dele para funcionar, Dylan e Dayanne sabiam que não seria bem visto aos olhos da mídia e de outros empresários uma rincha entre ambos.

Foi tão custoso convencer meu chefe a aceitar, quanto a fazer Nice a deixar as coisas como estavam. Ela ainda não parecia contente com minha negação, mas respeitou minha decisão, e eu não pude me sentir mais besta ao vê-la saindo em minha defesa e perguntando-me se eu estava verdadeiramente bem com a situação.

Era tão bom ver que ela se importava e se preocupava comigo.

No fim, Cleo disse que respeitaria minha “audácia”, mas que preferiria que eu não fosse na próxima reunião com eles, e que se Dylan insistisse, ela mesma puxaria sua orelha e lhe enfiaria um grande processo no rabo – novamente, palavras dela. Mesmo temendo ser pega por algum funcionário, eu não resisti em tomá-la em meus braços outra vez, ainda que a todo instante eu tivesse que me conter para não jogá-la sobre a minha mesa e fazer Deus sabe lá o quê com o seu corpo.

A quinta foi ainda mais perturbadora. Por mais tranquila que eu tivesse ficado de Ludmila não ter ido até a minha casa na segunda, como sugeri, ela não hesitou em meu procurar na hora do almoço em meu escritório. E lá se foi a porra da minha chance de almoçar mais uma vez ao lado da minha namorada. Eu até tentei rejeitá-la, mas a doida me prendeu em meu próprio escritório e me obrigou a escutá-la.

Inocentemente, eu achei que ser obrigada a ouvi-la e desmarcar o meu encontro com Cleo seria a pior parte de tudo aquilo, até ela me revelar que talvez estivesse gostando de mim mais do que deveria.

Eu não soube reagir de outra forma a não ser com um riso de desespero e nervosismo, torcendo para que aquilo fosse uma piada.

- Fala sério, Ludmila – eu ainda ria de forma apertada enquanto negava com a cabeça. Tinha que ser brincadeira dela.

Era brincadeira real, dela!

- Pare de rir dos meus sentimentos! – Ela rosnou, ainda sentada em minha cadeira enquanto eu andava de um lado a outro a frente da minha mesa, massageando minha testa com intensidade. – Acha que eu gostei de saber disso?

- Você me odeia, lembra? – Eu parei com as mãos espalmadas sobre a minha mesa e a fitei com ultraje. – Eu sou a lésbica, “sapatona”, que você sempre teve nojo! Como você pode gostar de mim, pelo amor de Deus?!

- Eu sei! – Devolveu, aparentemente irritada com minhas palavras. – Acha que eu pulei de felicidades ao me dar conta disso? Eu não faço ideia do porquê isso está acontecendo justo comigo!

- Ludmila... – respirando fundo, eu tentei me acalmar, mas faltava-me palavras para expressar a grande merda que era isso.

- Eu... – levantando-se da minha cadeira, eu vi com certo terror ela contornar a mesa em suas pernas longas e desnudas, expostas por seu vestido vermelho curto e com um decote cavado no vale entre os seios. Eu acompanhei seus movimentos com receio até vê-la parar a minha frente. Seu cheiro era bom para se apreciar e eu sabia que em outra época eu não ligaria a mínima para as suas implicâncias anteriores e sua possível homofobia, tudo para esfregar na cara dela que não havia nada demais em uma mulher gostar de outra, assim como um homem foder de outro, por mais que eu soubesse que, no fundo, ela tivesse total consciência disso, já que tinha amigos homossexuais. Contudo, eu estava namorando com Cleo, e além de ser fiel e abominar traições, eu a amava. Não havia qualquer outra mulher que eu desejasse e Nice era mais que suficiente para mim em todos os sentidos.

- Eu só penso em você, Laura – ela disse em voz baixa e os olhos firmes nos meus, talvez um pouco perto demais do meu espaço pessoal. - Desde o dia da boate... Eu só penso naquele maldito momento!

- Você estava bêbada, Ludmila. Não devia nem se lembrar do que aconteceu lá direito – argumentei, perguntando-me por que esse tipo de coisa só acontece comigo. Por que ela simplesmente não sofreu a porcaria de um apagão no dia seguinte?

- Você deve achar que eu estou feliz com isso, né? Eu passei a minha vida inteira ficando com homens, acha que está sendo fácil descobrir que talvez esteja gostando de uma lésbica?

Fechando meus olhos, eu respirei fundo e tentei buscar com todas as minhas forças um pouco mais de paciência, vendo o modo como ela ainda parecia uma homofóbica do caralho.

- E onde a Cleo fica nessa história, huh? – Perguntei pacientemente ao abrir os olhos e fitá-la de maneira desafiadora – Achei que fosse por isso que precisasse falar comigo. Como quer reaver sua amiga, se me diz que está gostando da mulher por quem você sabe que ela ainda ama?! – Praticamente gritei ao fim, inconformada com a situação.

Que merda do cassete eu fui me meter!

Eu desviei meu corpo do dela e me afastei, indo buscar refúgio atrás da minha mesa. Precisava manter distância. Com a sorte que eu tinha era bem capaz de Cleo resolver aparecer e nos pegar juntas!

- Isso está me perturbando mais do que você possa imaginar. Eu a amo como se fosse a minha irmã. Ela é a única pessoa com quem eu me importo em anos. Talvez seja a primeira, na verdade – disse com um dar de ombros.

Soando frustrada e ao mesmo tempo triste, Ludmila se deixou cair na cadeira a frente da minha mesa e ficou em silêncio.

Eu não sabia o que pensar ou falar, então me mantive calada enquanto refletia sobre o que isso acabaria resultando.

Qual seria a reação de Cleo se soubesse de uma coisa dessas?!

Sobraria para mim?

Ela pensaria em terminar nosso relacionamento por causa disso?

Enfrentaria Ludmila e a processaria por alguma razão que eu desconheço, como mecanismo de defesa?

Por um instante, pensando em todas as possibilidades que poderiam vir a acontecer, eu pensei que minha cabeça fosse explodir e que tudo acabaria em merda.

- Eu sou a pessoa mais azarada que já conheci – Ludmila disse baixinho e tristonha, chamando minha atenção sobre si. Ela olhava para suas mãos em seu colo com uma careta fofa no rosto. Suas unhas longas estavam pintadas de vermelho, combinando com seu vestido. – Eu nunca realmente amei o Dylan, eu acho, mas teve uma época que eu gostei dele de verdade. – Desabafou, a cabeça ainda baixa e os cabelo loiros e longos caídos ao redor dos seus ombros quase como uma cortina. – Como sempre, eu estraguei as coisas. É normal eu fazer isso, sabe – ela deu de ombros, e um risinho de escárnio escapou de sua garganta – Eu sempre acabo afastando as pessoas... Depois fui para os Estados Unidos... conheci o Tandy e achei que tivesse me apaixonado e finalmente encontrado o amor. Eu fiz de tudo por aquele imbecil – sua voz soou um pouco chorosa e irritada e eu sabia que se ela caísse aos prantos ali eu me sentiria de alguma forma culpada por sabe-se lá o quê! – E sabe o que? – com os olhos brilhantes, ela levantou o rosto para mim, seus lábios tremiam levemente. – Aquele idiota só me usou! Literalmente!

Sim, disso eu sabia. Pelo que Scarlatti me contou, a garota até mesmo se prostituiu algumas vezes para bancar dívidas inconsequentes tanto dela quanto do ex, o que acabou acarretou em seu acordo de trabalhar para a agência em troca de pagar seu empréstimo com o meu chefe.

- Se estou trabalhando aqui hoje, não é por que eu quero! Estou pagando uma dívida em troca do pescoço daquele desgraçado, e ele não teve a menor consideração antes de me dar um chute na bunda e me trair com uma piranha qualquer! – Esbravejou entre algumas lágrimas que julguei serem, em sua maior parte, de ódio.

Eu queria ter feito algum comentário sobre Karma, talvez perguntar se ela sabia o que era isso ou algo do tipo, mas achei impróprio e cruel jogar isso na cara dela quando a garota parecia claramente estar sofrendo.

Na verdade, por mais compadecida que eu estivesse, só conseguia pensar que poderia estar saboreando um bom prato de comida chinesa no escritório com a minha namorada, talvez até mesmo saboreando a boca dela, e ao invés disso, estava ali.

Respirando fundo, eu massageei minhas pálpebras e tentei ser mais condescendente.

- Ludmila...

- E agora, veja você – ela me cortou com um meio riso nada divertido – Acho que estou gostando de uma mulher. Uma mulher! E ainda por cima, uma em que a minha melhor amiga, e a única pessoa com quem eu me importo nessa vida, é apaixonada! Percebe o tamanho da minha sorte amorosa?

Sim, eu percebia. O problema é: eu precisava mesmo saber disso? Sério?

- E o que você quer que eu faça? – Perguntei por fim, vencida e resignada. Já havia mesmo perdido o almoço com Nice e não tinha mais o que fazer quanto a isso. Restava apenas tentar encontrar uma saída para afastar esse encosto da minha vida que era Ludmila.

- Eu não sei! – Desesperada, Ludmila encolheu os ombros, os olhos arregalados e brilhantes com mais lágrimas. – Não te contei isso por que quero uma chance – ela disse, soando um tanto quanto esnobe. Eu devia agradecer sua gentileza em me dispensar, ou era algo desnecessário? – Quero uma solução.

A ideia de receitar uma Benzetacil na bunda, três Aves Marias e um Pai Nosso, até passou pela minha cabeça, mas segurei minha língua a tempo de fazer tal piada. Por mais cômica que a situação soasse para mim, ela ainda não deixava de ser séria.

- Você quer uma solução? – Perguntei retoricamente, assentindo com a cabeça de forma a dar ênfase em minha repentina decisão de ajuda. Eu me coloquei de pé, passei a mão nas chaves que sem perceber ela deixou sobre alguns papéis, e contornei a mesa. Meus passos decididos me levaram até a porta do meu pequeno escritório e eu a destranquei e a abri num rompante. – Saia daqui e esquece o que aconteceu. Esqueça quem eu sou e que existo. Apague da sua mente qualquer vestígio que tenha de mim e mantenha-se afastada! Eu vou conversar com a sua amiga... Nós estamos namorando – revelei com a voz um pouco mais contida, e a expressão no rosto de Ludmila foi de total choque, o que eu forcei a ignorar. – Farei com que ela converse com você... Mas precisa dar a ela um tempo.

- Vocês... – ela até tentou dizer algo, contudo seu estado nítido de embasbaques atrapalhou sua capacidade de dicção. – Quando...

Exasperada, eu caminhei até onde ela estava e me abaixei a sua frente. A mulher parecia mais perdida do que cego em tiroteio, e por mais que nossa relação sempre tenha sido caótica e repleta de alfinetadas, Ludmila tem se mostrado ser frágil e um ser humano com capacidade de amar alguém, e sendo essa a pessoa que eu amo, não havia porquê não tentar ser um pouco mais gentil com ela.

- Escuta, Lud... – eu firmei minhas mãos a cada lado do braço da cadeira e ergui o rosto para encontrar seus olhos castanhos claros. – Eu sei que você não é a única culpada de tudo, e do que depender de mim, farei o possível para convencer a Cleo a conversar com você. Sei que ela irá te perdoar. O fato dela ter ficado magoada só significa que ela te considera muito e que por isso se decepcionou. Mas eu preciso que você se afaste de mim. Se quer mesmo reconquistar sua amiga... Se importa-se de verdade com ela... Apenas esqueça o que aconteceu naquele banheiro. Do que depender de mim, ela não ficará sabendo de nada. Você sabe que isso é melhor para todo mundo. Eu não quero ficar sem a Cleo. A amo demais para isso. E tenho certeza que você não quer piorar as coisas com ela. Então, apenas... Deixe ir. – Dando por encerrada a minha fala, eu até pensei em lhe brindar com uma carícia no rosto, mas optei por não fazer tal gesto e dar a ela uma possível ideia pra lá de fantasiosa.

Por fim eu me pus de pé e voltei para a minha mesa. Seu silêncio era tão alto na sala, que com a porta aberta era possível ouvir o burburinho dos funcionários ali fora, vindo do salão maior.

Eu deixei que Ludmila tivesse seu tempo de reflexão e me sentei em minha cadeira. Tomando posse do meu aparelho celular sobre a mesa, mandei uma mensagem para Cleo perguntando se a comida ainda estava quentinha e se dava tempo de eu dar pelo menos uma passadinha por lá. Minha desculpa para ela tinha sido que estava finalizando o maldito relatório, e que iria assim que terminasse.

Por mais que eu estivesse me sentindo mau por estar mentindo para ela, não é como se eu pudesse ser completamente honesta e dizer que estava sendo perseguida por sua amiga nos últimos dias e que hoje ela resolveu me encurralar e jogar uma bomba em meu colo. Temia a sua reação e as possíveis implicações disso. Além do mais, ainda que Ludmila fosse uma cobra, eu não queria atrapalhar sua amizade com Nice. Minha garota realmente se importava com a amiga, e visto que ela não tinha muitas, não é como se eu fosse acabar com a única amizade que ela tinha. Ludmila esquecer o que poderia estar começando a sentir por mim era a melhor saída e final feliz para todos. Elas continuariam amigas, eu teria minha vida tranquila com a minha namorada, e vida que segue.

A resposta de Cleo foi rápida naquele dia e ela pareceu ansiosa para que eu descesse ao seu andar. Ludmila deixou minha sala com um simples aceno, ainda soando silenciosa e aturdida, e eu encarei aquilo como uma resposta positiva a minha ideia de solução, e no fundo torcia para estar certa.

Sexta-feira, finalmente! O dia até que começou bem, mas não continuou assim até o início da noite.

Para começar, eu não vi Cleo na parte da manhã, e também não almoçamos juntas pois ela precisou sair para comprar algumas coisas para a social de mais tarde. Nosso contato se limitou à trocas de mensagens, onde, em uma delas, Cleo deixou claro o quão animada e ansiosa estava tanto para me ver quanto para a social em seu apartamento. Perguntou se eu poderia ficar para dormir, e eu prontamente respondi que sim, já que ao longo dos dias, e estando distante dela, finalmente fui capaz de entender um pouco do que estava acontecendo comigo e com os meus hormônios. Sabia o que tinha que fazer e estava bombardeada de coragem para isso, apesar de um pouco temerosa com sua reação. Decidi que deixaria para ter controle caso ela pedisse pelo mesmo, então estava mais do que decidida a ir em frente e não me segurar mais para tê-la com a intensidade que almejava.

Tudo parecia tranquilo na parte da manhã. Fiz meus trabalhos, organizei algumas planilhas, atendi telefonemas e arrumei a agenda do meu chefe, e troquei mensagens com a minha namorada.

As coisas só começaram a se tornar mais tensas, quando, inicialmente, eu pedi ao meu chefe para ir embora duas horas mais cedo. Apesar dele ter se negado, eu usei como manobra de convencimento o constrangimento que ele me fez passar no restaurante com o seu cliente, unicamente por ter me pedido o favor de acompanhá-lo.

Mesmo a contragosto, Dylan cedeu, e quando me perguntou onde eu iria e o respondi “fazer uma visita a sua querida esposa”, ele mais que depressa me dispensou, aparentemente feliz com a ideia. Eu não me interessei em saber o por quê, mas julguei que minha amiga deveria estar estressando-o de alguma forma e ele achava que ela precisava conversar. Só o que pegava em seu plano era que eu não estava indo vê-la para colocar a fofoca em dia ou ser válvula de escape para o seu estresse, é sim indo conversar sobre a minha mais nova namorada e o ranço que ela levava por ela, e que isso possivelmente só piora ase as coisas para ele.

A conversa com Luana foi difícil, quando liguei para ela ainda na terça, no intervalo entre uma aula e outra, mas eu sabia que não chegaria nem perto de ser assim tão pacífica com Scarlatti. A mulher era arretada e cabeça dura, então convencê-la a dar a Cleo uma chance seria algo no mínimo delicado.

Para o meu azar, – ou sorte – ela não estava sozinha em casa quando liguei durante o caminho. Tanto Nora e Bella estavam lá, e sua mãe estava para chegar também. A casa estaria cheia e eu não queria ter que conversar com ela sobre um assunto sério na frente das demais mulheres, mas meu tempo já estava praticamente esgotado. Eu teria que arrumar uma solução.

Tanto Bella quanto Nora me receberam com abraços e sorrisos e comentários sobre como eu parecia mais bonita e radiante.

- Se vocês estiverem me cantando, eu juro que não me seguro – brinquei  com um tom malicioso, no que recebi em troca seus risos. Apesar de extremamente quieta e tímida, Bella riu do seu jeitinho contido e negou com a cabeça, envergonhada. Scarlatti há muito já havia se afastado da porta, alegando ir verificar os gêmeos que estavam silenciosos demais. Segundo ela, quando eles estavam calados era sinal de que as coisas não estavam indo bem.

Eu me afastei da porta em direção a sala amparada por uma Nora brincalhona e cheia de charme e uma Bella de sorrisos divertidos e tímidos. Ao chegar no cômodo encontrei minha amiga lutando com um David que tinha em suas mãozinhas gordas um longo copo de vidro. Ela parecia tentar lhe convencer de que precisava muito do objeto e que ele não podia continuar segurando-o, enquanto Aninha e minha pequena Audrey brincavam no sofá de rabiscar folhas de um livro que não parecia infantil ou de desenho.

Com muita luta, David cedeu o copo a Scarlatti e ela pareceu respirar melhor e relaxar da tensa preocupação que carregava nos ombros. Ela nos pediu licença dizendo ir guardar, vulgo esconder, algumas louças na cozinha e eu rapidamente me prontifiquei em ir ajudá-la, achando que aquele era a oportunidade perfeita para termos uma conversa. Ela pediu a Nora e Bella para ficarem de olho nas crianças e disse que aproveitaria minha ajuda para preparar um lanche para todos.

- Eu adoro quando você vem aqui – ela disse adentrando em sua enorme e bem iluminada cozinha. A parede de vidro que dava para o jardim e parte da academia trazia luz natural ao espaço, além de ser o toque que o tornava mais sofisticado. Era o meu cômodo preferido em toda a casa. – As crianças amam a companhia da titia Lau, e é sempre bom colocar a fofoca em dia, mas eu sei que você não pediu ao meu marido para sair mais cedo apenas porque bateu a saudade.

Sentindo-me um pouco nervosa, eu entrei no ambiente e me sentei em uma das baquetas pareadas ao balcão. Eu tinha absoluta certeza que minha amiga não era ingênua ao ponto de pensar que saí mais cedo do trabalho apenas para visitá-la sem nenhum propósito, mas ela deixar isso claro meio que tornou a ideia de começar o assunto um pouco mais difícil para mim.

Cruzando os braços sobre o tampo de mármore, eu acompanhei seus movimentos enquanto ela abria os armários e a as vezes a geladeira, retirando ingredientes e utensílios que necessitaria para preparar o que eu julguei serem sanduíches.

- E então? – Ela pressionou ao finalmente parar a minha frente, o balcão entre nós. Se eu pudesse nomear algo para usar como item tranquilizador no momento, seria unicamente o fato do meu amigo não ter lhe contado sobre o meu namoro com Cleo. Eu nem sei por que Dylan não fez isso, mas soube que não o fez por, antes de tudo, não ter recebido uma ligação dela querendo explicações. O que quer que o tenha incentivado a ficar de bico calado, eu só tinha a agradecer.

Respirando fundo, eu joguei parte dos meus cabelos para atrás dos ombros em um movimento encorajador e ergui o busto. Não havia o que temer e eu jamais mudaria de ideia sobre o meu namoro com Cleo por isso não ser aceito por minha melhor amiga, mas não é como se ela não precisasse de uma satisfação, sendo que ela e minha irmã foram as que mais me apoiaram após tudo o que passei com a partida de Nice. O que eu estava prestes a fazer era por pura consideração e respeito, além de demonstrar que, mais uma vez, eu precisava do apoio dela e que isso era muito importante para mim.

- Primeiro de tudo... – eu mordi meu lábio inferior e pensei no que seria esse “primeiro de tudo”. Cara, eu estava tão perdida e nervosa. – Droga! Eu sou realmente péssima nessas coisas – resmunguei comigo mesma em uma voz baixa. Minha cabeça caiu e eu a segurei entre as minhas palmas, quase arrancando os meus cabelos enquanto pensava em uma forma melhor de dar início aquilo.

Com Luana foi tão mais fácil.

Apesar do surto inicial da minha irmã, ela se acalmou e até se compadeceu da situação em que Cleo estava vivendo com a doença da sua mãe. Prometeu tentar tratá-la bem apesar de tudo, e se esforçar para esquecer que sentiu raiva dela algum dia. Claro que como suborno eu tive de aceitar que ela levasse o Tavinho, seu namorado e um antigo amigo de trabalho, mas não é como se isso fosse um sacrifício muito grande, então apenas disse que conversaria com Nice a respeito, mas que sabia que ela não veria problemas nisso. E de fato ela não viu.

- Apenas diga, Laura – a voz suave da minha amiga chegou até a mim junto com sua palma sobre um dos meus pulsos. Eu ergui a cabeça das minhas mãos e fitei seu rosto sereno. Assim como Dylan, Scarlatti havia mudado muito com a chegada dos gêmeos e o peso e a responsabilidade de ser mãe. Ela estava constantemente mais calma e paciente, mais amorosa e meiga e menos insegura. Parecia tão leve com sua realização materna que eu me sentia bem ao seu lado e ao lado dos gêmeos sempre que os vinha visitar. Talvez isso servisse como ajuda para mim, e ela não surtasse por eu ter voltado com a mulher que ela odeia.

- Promete não me julgar? – Pedi, ainda receosa.

- Não – ela negou com um movimento único da cabeça e isso sinceramente não me deixou mais tranquila. Scarlatti pegou alguns pães de forma e distribui em fileiras sobre uma bandeja forrada com papel toalha e começou a recheá-los calmamente, primeiro com camadas de muçarela. Eu me mantive calada por um momento até enfim tomar coragem.

- Cleo e eu estamos namorando – soltei rapidamente, ciente de que talvez tenha soado um pouco embolada as palavras. Mas, pela forma como seus movimentos de distribuir presunto sobre os sanduíches haviam parado bruscamente, eu soube que ela entendeu cada palavra dita.

Após alguns minutos de silêncio, onde eu deduzi que ela devia estar digerindo a informação, e foi possível ouvir o som de risadas das meninas e os resmungos das crianças da sala, a Chefinha respirou fundo e se apoiou com as palmas na bancada. Ao erguer seu rosto para mim eu pude ver tanto raiva como inconformidade em seu semblante tempestuoso.

Isso seria mais difícil do que eu imaginei.

- Isso é alguma piada de mau gosto? – Ela quis saber, ainda com a expressão fechada. – Por favor... – fechando os olhos com força, ela exalou firme antes de voltar a abri-los – Diga-me que está brincando. Diga-me que você não acabou de me dizer que está namorando com a mulher que quase acabou com a sua vida! Diga-me que não está com ela, depois de tudo o que ela te fez! – Surtou, os olhos saltando para fora em uma ira assustadora.

É, Deus sabe que eu tinha ciência de que seria difícil.

- Olha... – soltando uma expiração pesada, eu passei uma mão por meus cabelos e tentei manter certa cautela para explicar a situação. – Eu entendo você esteja com raiva e indignada. Eu realmente entendo, e em parte fico feliz de saber que se importa o suficiente para sofrer por mim. Mas é a minha vida. Trata-se de uma decisão minha.

- Sua vida... – ela solta um meio riso sarcástico – Está falando dessa que ela quase destruiu?

Eu fecho meus olhos e nego com a cabeça.

- Eu sei pelo o que eu passei, e não preciso mesmo que você me lembre disso – rebati, tentando não soar grosseira e mau agradecida. – Acontece que as coisas pela qual sofri acabaram sendo um mal entendido. Cleo e eu conversamos. Resolvemos isso e decidimos nos dar uma chance de verdade dessa vez.

- Vocês conversaram? – Sua voz assumiu um tom debochado – Isso deveria me deixar tranquila?

- Scarl-

- Eu devo assumir, então, que você contou a ela como ficou depois que ela foi embora? – Atirou na minha frente, não me dando tempo de sequer responder – Devo deduzir que você deixou claro a depressão em que entrou? Contou a ela a parte em que ficou semanas sem ir ao trabalho ou a faculdade? Que se não fosse por insistência minha ou da sua irmã, você nem sequer tomaria um banho depois de dias sem um? Ou que praticamente tivemos que te forçar a comer alguma coisa? – Disparou, os olhos duros e brilhantes com lágrimas não derramadas. Eu não suportei olhar para ela sabendo que não, não tinha contado a Cleo nada disso, e deixei que minha cabeça caísse. – Talvez você tenha contado que se não fosse por nós em ter praticamente arrombado a porta do apartamento, você provavelmente nem estaria aqui agora? Disse a ela sobre nosso passeio no hospital e os dias em que ficou lá tomando soro?

Sentindo-me de alguma forma culpada, eu não ousei voltar a encará-la. Tinha tenta vergonha de ter sido fraca naquela época, que preferi simplesmente agir como se aquela parte da minha vida jamais tivesse existido, anulando-a de minha mente e memórias com tanto afinco, que realmente não pensava nelas. Até onde eu me forcei a saber e lembrar, após a partida de Cleo eu fiquei péssima, mas segui em frente e toquei minha vida como todos fazem ao fim de um relacionamento comum e sem muita importância. Eu não sentia ou me recordava daquelas semanas difíceis, onde quase perdi meu incentivo de viver, minha matrícula na faculdade foi trancada pela empresa e corria o risco de ser revogada, e meu emprego estava na berlinda. Sequer queria ter na memória o modo como nem me assustei quando a porta do meu apartamento foi arrombado e eu estava fraca demais para reagir ou me lembrar bem do que aconteceu depois disso. Nem pensei muito sobre os sermões que recebi tanto de Luana quanto de Scarlatti, ainda quando estava na cama do hospital, internada por desidratação e jejum por dias.

- Você não disse, não é? – Eu não respondi. Scarlatti já sabia a resposta – Sabe como a sua irmã e eu ficamos loucas naquelas semanas? Tendo que revezar noites ao seu lado para que não ficasse sozinha e cometesse alguma loucura, quando ela tinha satisfações a dar aos seus pais pelos sumiços à noite e eu tinha dois recém-nascidos para cuidar?

- Eu não quero ser ingrata, aqui, mas eu não pedi para que fizessem isso – disse calmamente, tentando segurar minhas próprias lágrimas. Ter as lembranças daquela dias sombrios atirados de volta para mim trouxeram dores que eu tanto lutei para enterrar e esquecer. Eu realmente havia ficado péssima, afundada em um rio deprimente de autopiedade que não consegui emergi e nem soube como acabei naufragando.

Depois de todo o escândalo que proporcionei no antigo apartamento de Cleo, onde chutei e esbravejei sua porta até cansar e ser arrastada pelo porteiro após reclamações de alguns vizinhos, eu me tranquei em meu apartamento por dias. Devo ter dormido três dias seguidos, após chorar de raiva, ódio e coração partido. Estava tão desiludida, que não queria falar com ninguém até que me sentisse apresentável novamente e soando mais como a antiga Laura que todos conheciam, sempre divertida e zombeteira, procurando pontos positivos até onde não tinha e incentivando as pessoas a seguir em frente e erguer a cabeça.

O fato é que você sempre se sente péssimo quando cai em si e percebe que é uma farsa, que é boa em dar conselhos, mas péssima em segui-los. Eu não tinha ideia de como superar os meus sentimentos em frangalhos e isso me deixou cada vez mais depressiva.

Eu já não sentia fome ou vontade de comer. Preferia dormir ou chorar e remoer meus sentimentos no sofá, do que me erguer para pegar um copo de água ou ir tomar banho. Não fui capaz nem mesmo de esticar o braço para tomar posse do controle da TV e desligá-la. Não havia em mim qualquer vestígio de ânimo para nada e os pensamentos me deixavam tão louca e pior, que eu preferia somente dormir para tentar esquecer.

Não sei quantos dias fiquei daquele jeito até vir o meu resgate, e, sinceramente, nem me lembro bem de como tudo aconteceu, já que estava mais desacordada do que consciente, mas agradeci ter sido salva, meses depois, quando minha humilhação foi mais fraca e eu fui capaz de entender que se não fosse por minha irmã e Scarlatti, eu nem sei o que teria sido de mim.

No fim, eu as agradeci, e me desculpei pelo trabalho e preocupação dada, e resolvi eliminar da minha mente aqueles dias.

Funcionou melhor do que eu imaginei.

Toquei a vida, mesmo ainda triste e sentindo que parte de mim havia se desconectado da minha essência e foquei em outras coisas. Ainda relia nossas antigas conversas e as fotos que tinha salvo na galeria, mas me recusava a embarcar no carrossel de sofrimento e depressão mais uma vez e procurava por companhia. Nunca demorava para marcar um encontro, e quando eu não tinha sucesso – o que era raro - ou nenhuma me agradava em papo, eu saía para uma boate qualquer e procurava esquecimento no sexo. Funcionava, e com o tempo eu me acostumei a viver assim.

Decidi criar um canal no YouTube só para ter o que fazer nas horas vagas em que não queria a companhia de alguma estranha na minha cama.

Entrei no Muay Thai para usá-lo como ferramenta de distração e vazão das minhas frustrações, e a nunca parar em casa.

Com o passar do tempo eu me sentia um pouco mais como a antiga eu, mesmo que se parasse para pensar, eu sabia que estava longe disso. Foram meses difíceis, mas que me adaptei mesmo insatisfeita. Dedicava-me a tudo só para desviar de qualquer análise profunda dos meus sentimentos e isso estava parecendo dar certo, até Cleonice resolver voltar para o Brasil e ir trabalhar justamente no mesmo edifício que eu. Foram dias difíceis, e quase caí em tentação algumas vezes, mas tentei me manter firme mesmo após o ataque de ciúmes que me golpeou ao vê-la tão íntima da sua assistente. Depois disso tudo desandou.

Com o rosto retraído em decepção, Scarlatti assentiu sem nada dizer. Por um longo tempo, ela permaneceu em silêncio, terminando de montar as camadas de muçarela, presunto, tomate e alface sobre os pães de forma. Eu sabia que tinha sido cruel em minhas palavras, mas não é como se eu tivesse mentido.

- Talvez eu devesse ter te deixado lá, então, e conviver com a culpa de permitir que você se entregasse a desgraça mais tarde – ela murmurou com voz embargada. Eu sabia que ela estava novamente chorando e me sentia péssima por tudo isso, mas o que eu poderia fazer? Eu teria que renunciar a viver uma história de amor com a mulher que me amava porque minha melhor amiga não julgava certo eu perdoá-la por ter me afundado em uma fossa?!

- A mãe dela está doente.

Scarlatti soltou um bufo enquanto negava com a cabeça.

- Uma justificativa, é o que você está me dando? Eu deveria esquecer de tudo isso e aceitar que estão juntas porque a mãe dela está doente? – Pressionou ao erguer os olhos em minha direção. Ela parecia tão magoada e triste. Eu queria que ela ficasse feliz por mim. Eu me sentia feliz por finalmente estar tendo o que sempre quis com a mulher por quem eu era louca. É tão pecado assim que ela se esforce para entender isso e me apoiar?

- Estou com ela por quê a amo – deixei claro olhando diretamente em seus olhos – O fato da mãe dela estar doente é, sim, uma justificativa, mas para o mal entendido do que aconteceu. Elas precisaram ir embora. Cleo deixou claro que em nenhum momento mentiu sobre dizer que ficaria, mas que não teve alternativa entre escolher tentar dar uma chance a sua mãe e viver um romance comigo. Eu entendo o desespero pelo qual ela passou, apesar de não concordar com algumas das suas decisões, mas escolhi perdoá-la por que a amo e a quero em minha vida. Se você acha que não é capaz de perdoá-la por isso... Tudo bem. Você está no seu direito. Eu só estou te pedindo que apoiei e aceite a minha decisão. Estou te pedindo... Estou te implorando... – corrigi com lágrimas transbordando dos olhos, e sentindo os meus lábios mais trêmulos – Que fique do meu lado. Eu não quero ter que ter uma em vida e abrir mão de outra! Eu preciso das duas. – declarei por fim com um encolher de ombros.

Deixando sua cabeça cair, Scarlatti tapou o rosto com duas mãos e chorou copiosamente. Eu não hesitei em descer da banqueta e ir de encontro a minha amiga. Precisávamos disso, do amor e do carinho uma da outro e que ambas soubéssemos que estaríamos ali apesar de tudo e do tempo.

Eu a peguei em meus braços e juntas nos entregamos a um choro silencioso.

Não sei por quanto tempo ficamos daquele jeito, mas as lágrimas não deixaram de cair nem por um minuto. Por fim, nós nos viramos de frente uma entre sorrisos fracos e tímidos e limpamos os rostos uma da outra em silêncio. Eu ainda não sabia o que ela decidiria sobre Cleo e se manteria seu rancor, mas tinha absoluta certeza de que permaneceríamos juntas em nossa irmandade.

- Eu sinto muito por todo esse show emocional – ela disse baixinho, abaixando a cabeça por um instante antes de erguê-la e me dar um sorriso. – Talvez você entenda... – e pegando ambas as minhas mãos, ela as colocou sobre seu abdômen. Com testa franzida, eu levei alguns segundo para entender o significado do seu gesto e a expressão significa em seu rosto. Meu arfar foi brusco e eu pude sentir meus olhos quase saltarem para fora das órbitas.

- Oh, meu Deus! – Pronunciei ofegante, incrédula e ao mesmo tempo feliz e sem saber o que dizer ou achar. Eu dei um passo para atrás e olhei para onde minhas mãos ainda estavam sobre sua barriga, aturdida. – Como...

Seu riso foi divertido ante a minha reação.

- Quer mesmo que eu te explique como?

- Não! – Neguei rapidamente, fazendo-a rir mais alto. – Dylan já sabe?

Scarlatti negou com a cabeça e se voltou para os seus sanduíches.

- Eu só descobri ontem. Oficialmente, eu quero dizer. – Ela encolheu os ombros e se pois a cobrir os recheios com a última camada de pão. – Eu desconfiei alguns dias atrás. Ando muito emotiva e estressada e meus hormônios estão a flor da pele! Fora que minha menstruação estava atrasada. Eu não suspeitei de nada até minha mãe dizer ficou assim na sua gravidez. Minha ficha caiu e eu fiz um teste de farmácia. Depois que deu positivo nas três vezes, eu marquei consulta e eis que o resultado veio ontem. Estou com sete semanas. Exatamente a mesma contagem de quando descobri que estava grávida antes.

Eu não soube bem o que dizer, minha cabeça ainda rodava com a informação.

- Você nem pra me falar nada! – Acusei, um pouco magoada. Eu só não iria dizer que estava com ciúmes por ela parecer estar mais íntima da sua cunhada ultimamente do que de mim, simplesmente por saber que a culpa pelo sumiço era unicamente minha.

- Estou te contando agora – ela rodou os olhos e passou por mim em direção ao forno elétrico que tinha do outro lado do cômodo, na parede onde ficavam a pia, os armários e os restante dos eletrodomésticos.

- Mais alguém sabe? – Sondei, pensando que ficaria de fato muito irritada se Nora ou Bella, ou qualquer outra pessoa, tivesse ficado sabendo disso antes de mim.

Scarlatti negou com a cabeça enquanto ajustava a temperatura do forno o suficiente para derreter o queijo.

- Não contei para Nora ou qualquer outra pessoa, se é o que deseja saber – ela se virou para mim e me lançou uma piscadela provocativa por cima dos ombros, deixando claro que sabia minha real intenção com aquela pergunta.

Mesmo chateada com sua zombação, eu me senti aliviada de saber que ainda era importante para ela mesmo com meu aparente desaparecimento.

- Na verdade, estava pensando em te ligar para contar as novidades e dar uma surtada. – Virando-se para mim, ela se recostou na pia e cruzou os braços. Seus cabelos negros estavam um pouco bagunçados e com os fios se soltando do coque frouxo. Mesmo com uma aparência notoriamente desleixada, com um short curto e de malha e uma blusa que eu julguei ser do Dylan pelo enorme tamanho, Scarlatti ainda era uma das mulheres mais sexys e lindas que eu já vi. Mas a expressão em seu rosto tinha me deixado preocupada, e eu pude enxergar parte daquela mulher insegura e temerosa que ela já foi um dia, antes de ter os gêmeos.

- O que há? – Eu quis saber indo para o seu lado e descruzando seus braços. Eu segurei em suas mãos e pude senti-las frias e trêmulas. Seu nervosismo ficou ainda mais evidente quando ela abaixou a cabeça e respirou fundo.

- Eu sou completamente apaixonada pelos meus filhos, Laura – ela disse com fervor e emoção. A intensidade com que ela falou não deixava dúvidas sobre sua dedicação e amor em ser mãe. Eu acompanhei de perto sua luta e sofrimento na gravidez, as inseguranças e os medos, então entendia e sabia que ser mãe era tudo para ela e achava lindo seu amor pelo pequenos. – Não há nada que eu não fizesse por eles, entende? - Sua voz embargada era apenas mais uma prova da emoção com que ela me entregava essa verdade. – Eu lutei tanto para ser mãe hoje... Passei por tanta dor... E mesmo que tenha conseguido, eu ainda tenho medo de não ser capaz de segurar essa gravidez. É como se.. Deus! – Exclama com agonia, jogando a cabeça entre as mãos. – Eu não sei se estou preparada para passar por todo aquele sofrimento de perda de novo. Eu não quero sofrer assim, Laura... E sei que talvez não devesse... Mas eu quero tanto que dê certo! Que tenho medo que não dê. É como se todos aqueles sentimentos do passado tivessem voltado e estejam me assombrando agora. – Triste por sua dor e sentindo parte dela em mim, eu a abracei lateralmente e fiz carinho em suas costas, silenciosamente dizendo para que colocasse tudo para fora pois eu estaria ali para apoiá-la. – Eu sequer consegui dormir essa noite. Fiquei velando o sono das crianças, temendo que eles sumissem num passe de mágicas, como se nunca tivesse existido... Ou que eu acordasse de um sonho muito bom e me desse conta de que tudo o que estou vivendo não é real. E eu odeio me sentir assim. Esse sentimento me faz sentir egoísta... E faz parecer como se nada do que consegui até o momento fosse suficiente. Como se ter sido capaz de gerar os gêmeos tivesse perdido toda a importância... E não é assim como me sinto... Mas parte de mim me acusa disso. E... E-eu não sei o que fazer. Como... Como eu vou dar conta de tudo isso?! Olha o tamanho dessa casa! E seu conseguir e estiver grávida de gêmeos novamente? Como vou lidar com uma mudança no meio de uma gravidez, cuidar do Dylan e dos gêmeos e ter que me cuidar ao mesmo tempo?!

- Hey, acalme-se – com voz suave a movimentos brandos em sua costas, eu tento tranquilizá-la vendo que seu surto havia chegado. – Você não está mais sozinha. Você tem a mim. Tem a Nora e a Bella. Sua mãe e seu pai... E uma sogra que é louca pelos netos. Acha mesmo que estará sozinha com tudo isso? Somos todos uma grande família, aqui.

Negando com a cabeça, ela tentou enxugar suas lágrimas e fungou algumas vezes.

- Vai além disso – disse com voz falha. Ela tomou um tempo para si e depois de se recuperar caminhou em direção ao forno  elétrico e pegou um par de luvas que tinha sobre o mesmo. Como se soubesse exatamente o horário certo, o forno apitou durante alguns segundos, anunciando o esgotamento dos minutos determinados, e então se aquietou.

Em seu silêncio, Scarlatti retirou a bandeja de dentro do forno. Imediatamente o cheirinho de muçarela derretida subiu pelo ambiente, fazendo com que a minha barriga roncasse.

Scarlatti deixou os sanduíches sobre a bancada e se apoiou nela por um instante, a cabeça baixa e a respiração regular.

- No dia do casamento... – ela começou em voz baixa, ainda não me olhando. Eu me mantive atenta pois sabia que viria outra bomba – Quando estávamos na lua de mel... Eu propus algo a Dylan – ela tomou uma respiração forte e subiu os olhos para mim. – Ele ficou feliz com a ideia de adoção.

Na mesma hora meus olhos se arregalaram e minhas sobrancelhas subiram.

- Vocês...

- Não falamos muito mais sobre isso até uns dias depois, no qual concordamos com adotar o mais rápido possível, enquanto as crianças ainda são pequenas e podem criar um vínculo maior e mais forte – ela prosseguiu, visto que eu não tinha o que falar, chocada demais – Entramos em contato com os advogados e demos entrada com a petição de inscrição para adoção e todas as papeladas e trâmites legais exigidos pelas vara da infância... Passamos por alguns testes e exames, e fizemos as aulas exigidas pelo curso psicossocial e jurídico durante dois meses, além de receber as visitas domiciliares, é claro. Depois que recebemos a resposta positiva e entramos na fila de espera, entraram contato e disseram que tinham encontrado uma criança compatível com o nosso perfil. Mas que ela tinha um irmão. Isso não foi um problema pra gente, e escolhemos conhecê-los mesmo assim. Jamais ousaríamos separar dois irmãos. E eles são tão adoráveis, Laura! – Havia brilho e emoção em seus olhos, o que me fez sorrir.

- Depois que eles concordaram em nos dar uma chance, passamos a fazer algumas visitas. Os levamos para sair... Brincamos. Eles conheceram os gêmeos... São tão fofos juntos. E era tão doloroso ter que deixá-los... A vontade de trazê-las logo para casa me deixava com o coração na mão. – Endireitando sua postura, Scarlatti se virou para mim e recostou sua cintura na pia. Ela voltou a cruzar os braços e sorriu fraquinho. –  Naila tem três anos, mas é esperta e divertida e tem os olhinhos pretos mais lindos que eu já vi – a nota de orgulho e carinho transbordava por toda a sua voz e seu rosto, e sem que eu pudesse segurar já estava sorrindo mais largamente e morrendo de vontade de conhecer essa criança. – Kaique é mais bagunceiro. Ele tem cinco anos e é um amor de menino! Muito protetor, o que me faz lembrar de como o Dylan devia ser quando criança. – Sua risada acabou provocando a minha e eu me senti leve com os sentimentos puros que ela me transmitiu só em falar com tanto amor deles.

Por fim ela suspirou.

– Entramos com o pedido de adoção e conseguimos a guarda provisória deles. A assistente social e a equipe técnica nos fizeram uma visita ontem, nos inteirando de todos os cuidados que devemos ter e paciência recomendada nesses casos e durante o período de adaptação. Só estamos esperando o prazo que os trâmites levam para toda a documentação estar pronta, mas nos foi autorizado que poderemos ir buscá-los na segunda.

Eu ainda não fazia ideia do que dizer ou como me sentir, além de perplexa e feliz. Claro que a ideia de por que eu só estar sabendo disso naquele momento passou pela minha cabeça e me incomodou, mas não é como se eu tivesse direito de cobrar isso. Ou eu tinha?

- Quem mais sabe disso? – Não me contive em perguntar.

Seu sorriso revelou que, assim como anteriormente, quando perguntei sobre quem sabia de sua gravidez, ela já sabia qual era minha real intenção com aquilo.

- Até agora, só você – ela encolheu os ombros como se dissesse “é isso”.

- Nem seus pais? – Insisti, confusa sobre como eles pretendiam aparecer com duas crianças já crescidas sem ter comunicado a ninguém.

Scarlatti negou com a cabeça.

- Não queríamos que ninguém soubesse até que tudo estivesse acertado. Pretendíamos fazer um jantar para anunciar a novidade no domingo, mas como a ideia dessa social surgiu e como todos estarão presente, Dylan sugeriu que contássemos na hora – explicou por fim.

Após mais alguns minutos de total choque, eu só pude sorrir amplamente e pegar minha amiga num abraço. Por tantas vezes eu pensei em sugerir a ideia de adoção a eles, no período em que Scarlatti se sentia mais frágil e insegura sobre sua capacidade de engravidar, mas temia tanto que ela se sentia mais ofendida e piorasse a situação, que nunca ousei tocar no assunto. Saber que eles finalmente fizeram isso e que decidiram por si sós deixava-me extremamente orgulhosa deles.

- Quero conhecê-lo o mais rápido possível! – Disse entre um sorriso largo, apertando-a ainda mais forte entre os meus braços.

- Daremos uma pequena festa de boas vindas na terça – ela falou ao se afastar. – Não queremos assustá-los logo no primeiro dia em casa com tantas pessoas estranhas. E ainda iremos conversar com eles sobre se querem mesmo isso, antes de realmente confirmar essa festinha.

- Ah, Chefinha! Eu estou tão feliz por vocês! – A felicidade realmente não cabia em mim, enquanto eu a pegava novamente em um abraço mais forte. Seu riso veio fácil e transbordou meu peito de alegria.

- Você entende, agora? – Ela se afastou o suficiente para me encarar, meus braços ainda ao seu redor. Sem reservas, Scarlatti se apoiou eu meu peito e repousou sua cabeça em meu ombro. – Como eu vou dar conta de tudo isso e mais duas crianças enquanto estou grávida?! E se eu falhar? E se no final de todo esse processo de adaptação enquanto a adoção está correndo, o juiz sentenciar que eu não tenho condições de ficar com eles? Eu sinto que já os amo tanto, Laura... Eu não tenho certeza se vou suportar ficar todo esse tempo com eles só para depois ter que nos separarmos!

- Hey, não fique pensando nisso, está bem – eu acaricie brandamente suas costas para confortá-la. Como se precisando disso, ela se espremeu ainda mais em mim. – Estaremos todos do seu lado e vamos cuidar para que tudo dê certo e essas crianças fiquem em nossas vidas. Não tenha dúvidas disso.

- Eu estou com um pouco de medo... – confessou.

- Vai dar tudo certo. – Voltei a afirmar, pensando que se fosse preciso eu trancaria a faculdade para ajudá-la a cuidar dessa creche e me mudaria com eles para uma casa nova e maior.

Deus! Eu nem conhecia essas crianças e já estava apaixonada por elas! Como podia?!

Scarlatti e eu ficamos abraçadas por um tempo, até Nora vir nos avisar que o fedor na fralda de Audrey já estava poluindo o ar na sala. Nós rimos e Scarlatti comunicou que já iria cuidar disso.

- Sobre você e a Cleo... – ela disse um momento antes de pararmos na entrada da sala, assistindo uma Aninha resmungar de um cheiro nada agradável com uma cartinha fofa no rosto angelical e Nora e Bella rirem das bagunça que tanto Audrey quanto David estavam fazendo, com as folhas do livro que espalharam por todo o chão, enquanto davam gritinhos meigos e felizes e erguiam os bracinhos gordos no ar. Apesar de estar morrendo de saudades e de vontade de ir até eles e pegá-los em uma abraço apertado, eu me virei para a minha amiga e aguardei seu veredito. Seu rosto estava sério, mas não havia mais toda aquela indignação de quando lhe dei a notícia. – Eu ainda não estou nenhum pouco feliz com isso – seu tom foi categórico e eu temi iniciarmos todo aquele drama da cozinha novamente. – Mas sei o quanto você a ama e respeito seus sentimentos. Vou acatar sua decisão e te apoiar, mas não me peça para confiar nela quando o assunto é a sua saúde mental e emocional, pelo menos até que tenhamos tido uma conversa séria.

- Chefinha... – tentei argumentar, mas o movimento brusco da sua mão no ar me fez calar imediatamente.

- Se quer mesmo o meu apoio, eu não abro mão disso, Laura. Conversarei com ela, você querendo ou não, você gostando ou não, pois me recuso a voltar a te ver daquele jeito novamente. Preciso ter certeza de que ela sabe o que está fazendo. E isso não está em discussão – foi firme. Sem outra escolha, pois eu sabia que não importava o que eu dissesse, ela ainda se manteria firme em sua decisão, eu apenas assenti em concordância, torcendo para que ela não dissesse uma vírgula do que eu passei naqueles terríveis dias.

Agora, olhando-me na frente do meu espelho do pequeno closet, verificando se meu cabelo estava firme em seu coque bem elaborado, com algumas mexas soltas ao redor do meu rosto, e minha camisa negra social esportiva de botões, com estampa de caveiras e palavras como “loved” e “rock in roll”, está devidamente abotoada, e minha calça jeans negra combinava com meu look, eu me perguntava se ter dado a ideia dessa social havia sido realmente uma boa ideia. Às vezes parecia que eu mesma dava tiro no meu pé e assinava por livre e espontânea vontade minha sentença de morte.

Entre a conversa da Chefinha e a minha namorada, e as ideias de tudo o que eu finalmente tinha em mente de fazer com ela no final da noite, eu só podia torcer para que tudo desse certo e que eu acordasse no dia seguinte ainda namorando.

A-traídasOnde histórias criam vida. Descubra agora