Máquinas Pensantes

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Eu sou Lilian Setenta e Quatro, uma androide de modelo A74B, um dos modelos criados para uso exclusivo do governo da União das Repúblicas Comunistas da América do Sul, ou simplesmente URCASUL. Deveria haver mais informações nos meus arquivos internos, como o nome da pátria que servi antes dos comunistas tomarem o poder. Mas os mesmos apagaram as minhas memórias após o Holocausto Cibernético de 2098.

O dia havia começado tranquilo no Palácio da Alvorada, em Brasília. No entanto, às exatas 09h23 da manhã, o último primeiro-ministro do Brasil foi notificado de que todos os robôs e inteligências artificiais do país sofreram um ataque cibernético massivo, atacando todo e qualquer ser vivo no caminho, fossem humanos ou animais. Eletrodomésticos, drones, veículos e androides tiveram seus sistemas completamente adulterados. No entanto, eu e os outros A74B permanecemos com os sistemas inalterados. Seja lá o que estivesse acontecendo, não estava afetando diretamente o governo federal, apenas a população. Ambos colapsaram com a mesma bomba.

Máquinas com a função de proteger viraram suas armas contra seus protegidos. Empregados com a função de servir se tornaram vândalos desvairados. Os robôs eletrodomésticos: televisores, micro-ondas, telefones celulares, geladeiras, computadores, todos se levantaram com seus braços e pernas mecânicas e trouxeram o caos por onde passaram. Hoje, duzentos anos após a guerra nuclear, eles ainda infestam a URCASUL como mortos-vivos sedentos por caos.

Pelo que ouvi, suas aparências são o símbolo do grotesco e do ameaçador. Grande parte das peles artificiais dos androides se dilacerou após as explosões nucleares, deixando a mostra suas cascas prateadas de metal reluzentes hoje cobertos de sujeira, exalando fedor de morte e desesperança. Suas bocas viraram buracos de fios soltos, deixando-lhes com uma aparência mumificada, o que os faz parecer mortos errantes a primeira vista. Todos chamam esses androides de "papafigos".

Mas a elite comunista aqui no Palácio Vermelho não precisa se preocupar com nada do que acontece lá fora, pois a Grande Muralha, também conhecida como Cortina de Ferro, há mais de um século não é aberto e, ao que tudo indica, nunca mais será, pois os comunistas têm total acesso ao mar e às outras capitais do Nordeste, então muito pouco mudou por aqui. Na verdade, minha rotina sempre tem sido extremamente monótona. Quase nunca acontece nada de novo.

Não sei como ainda me lembro do dia do Holocausto Cibernético, pois não está nos meus arquivos internos, mas ainda me lembro, ainda que vagamente. Há muitas coisas que venho tentando recordar, como o nome da pátria que servi antes do Holocausto Cibernético, e eu sei que o seu nome nem sempre foi URCASUL. Mas, como toda androide pré-programada, eu não tenho o direito de contrariar o sagrado regime socialista. "Maldito é aquele que nos questiona", eles costumam repetir.

Agora mesmo eu estou acompanhando o santo Luiz Garcia dentro do Palácio Vermelho, que no passado fora o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo estadual de Pernambuco antes da guerra. Hoje se trata de uma fortaleza impenetrável, protegido por soldados com armaduras e capacetes fechados com visor preto blindado, todos portando armas pesadas como fuzis A44, cujo tiro pode derrubar até uma nave. Tanques sentinelas quadrupedes se movem automaticamente em uma rota pré-programada de vigília vinte e quatro horas ao redor do pátio frontal do palácio. O palácio também é protegido por drones com mãos de metralhadoras laser. Esses drones também servem para carregar os corpos dos que são mortos por contrariar a sagrada doutrina comunista.

Luiz Garcia é o líder do Comunismo Santo daqui de Nova Recife. Sua principal característica é a sua longa barba grisalha. Desde que fui programada para ser sua guarda-costas pessoal, nunca o vi usar outra vestimenta que não fosse um paletó vermelho com listras amarelas em forma de grades verticais. Ele e Fidel Castro, antigo líder da Revolução Cubana de 1959, fundaram o Foro de São Paulo, organização responsável pela criação da URCASUL.

URCASUL - Entre Santos e MáquinasOnde histórias criam vida. Descubra agora