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Os quatro homens do príncipe se aproximaram trazendo um corpo volumoso envolto na flâmula vermelha de Dalriada, que depositaram aos pés do rei. Daren afastou a flâmula com a ponta da bota, revelando o corpo ensanguentado de um dos lobos imensos que viviam nas florestas do reino.

A multidão soltou uma arquejar coletivo, assovios e murmúrios os varreram. A própria Deidra levou uma mão à boca, espantada tanto pela visão da criatura morta quanto pela imponência do príncipe. Aquelas feras eram letais e muitos homens já tinham morrido emboscados por elas nos recantos escuros da floresta, às vezes grupos de quinze pessoas ou mais eram atacadas sem piedade nas épocas de frio, quando a comida tornava-se escassa para os lobos... mas aquele príncipe e seu pequeno séquito de caçadores tinha saído ileso depois de se confrontar com as bestas.

Deidra reparou na expressão do pai, ele permanecia imóvel fitando a massa de pelos cinzentos a seus pés, até que de repente alguém bateu com a caneca na mesa.

— Boas-vindas ao Sem Coração!

E o rei sorriu. O salão explodiu em vivas e Daren pegou uma caneca, com a qual ofereceu um brinde à multidão antes de escolher um lugar na grande mesa para se sentar com seus homens.

Já tinha sido aventura demais para um dia, era hora de parar com os riscos. Agora Deidra voltaria para seu quarto, como já devia ter feito, se não fosse pelo príncipe... Mas no momento em que ela dava meia volta, os criados que perambulavam pelo salão entraram na cozinha, voltando com as bandejas vazias. Eles se espalharam ao redor dela, repondo os comes e bebes, impedindo sua passagem até a porta dos fundos.

De repente, enquanto ela tentava cavoucar uma brecha entre os ombros colados, alguém a agarrou pelo braço, uma mulher corpulenta de feições duras, que Deidra não reconheceu.

— Não fique aí parada com cara de idiota sem fazer nada, menina! — ela bradou, enfiando uma bandeja com canecas de cerveja nos braços de Deidra. A princesa tentou responder, mas o pânico fez travar sua garganta e sua voz saiu tão baixa que ninguém a escutou por conta do coro confuso de vozes e da música alta que voltara a ser tocada no salão. — Vá, vá, vá! — enxotou a mulher, empurrando-a junto dos demais.

Como um peixe sendo levado pela correnteza, Deidra se viu emergindo no salão abafado, em meio aos homens, aos risos e as piadas infames. A música fazia sua cabeça rodar, e ela própria rodou tentando sair dali, mas um homem puxou-lhe pelo ombro para pegar uma caneca.

Deidra sentiu a cerveja escorrer e respingar quando ela perdeu o equilíbrio e trombou em alguém. Uma caneca virou e uma voz grave feriu seus ouvidos com uma sucessão de impropérios que ela jamais tinha escutado em sua vida.

Quando ousou virar-se para pedir desculpas, a figura enorme do príncipe estava perigosamente próxima dela, avultando-a como um predador.

— Desculpe, senhor — ela sussurrou engolindo em seco, mantendo seus olhos voltados para o chão.

— Deixe disso, Daren, você precisava mesmo de um banho — um dos homens gritou acompanhado por gargalhadas. — Estava fedendo como um javali! Agora pelo menos você é um javali regado à cerveja! — E as canecas voltaram a bater na mesa com estrondo, fazendo a princesa se perguntar como elas resistiam por tanto tempo sem rachar no meio ano após ano.

A risada de Daren acompanhou o grupo, contudo, um segundo depois, ele já tinha pegado outra caneca, debruçado-se na mesa e lançado todo seu conteúdo na cabeça do homem. Se fosse qualquer outra pessoa, o cavaleiro poderia ter virado a mesa e começado uma briga ali mesmo, mas aparentemente quando se tratava daquele imenso príncipe, todos deixavam qualquer afronta passar. O homem limpou a cerveja dos olhos sem retrucar. A comoção, no entanto, chamara a atenção do rei, que agora se erguia em seu trono, olhando na direção do grupo arruaceiro.

Deidra encolheu-se. Se seu pai a reconhecesse, ela ganharia um castigo sem fim. Puxando a ponta da touca, ela virou de costas, o olhar fixo nas canecas como se assim pudesse se esconder. Ela deu um passo para longe da mesa, não havia ninguém na porta da cozinha; se fosse rápida, poderia esgueirar-se e sumir em um piscar de olhos.

Não conseguiu.

De novo se viu puxada por trás, dessa vez por Daren. Que os deuses a ajudassem! Uma mão firme e quente estava em seu braço, a outra apertando sua cintura. O restante do corpo dele colara-se escandalosamente às suas costas. Eles se encaixavam perfeitamente... Deidra percebeu, sentindo não só o rosto, mas até as orelhas e o pescoço queimarem.

E outras partes mais.

Não soube explicar como não deixara aquela maldita bandeja se espatifar no chão, uma vez que tremia muito.

— Não acabamos ainda, ratinha — ele disse. — Você me deu um banho, acho que agora tenho o direito de te dar outro, não é mesmo? — A boca dele estava perto demais da orelha dela e ela podia sentir o roçar da barba que começava a crescer, o hálito quente de cerveja e o cheiro de sangue nas roupas dele. Só os deuses poderiam ajudá-la!

Os homens ao redor de Daren aplaudiram, incentivando. Ela ouviu um deles gritar que ele deveria puni-la com severidade e muitas imagens passaram por sua cabeça. A principal delas era sobre seu pai descobrindo-a ali, nos braços daquele homem. Não queria nem pensar nas consequências... os lábios finos de Daren roçaram seu pescoço, arrepiando-a até o último fio de cabelo.

A voz de seu pai soou não muito longe. Ele a mataria se a visse. Era certo que ele a mataria! Pensar nisso fez com que Deidra largasse a badeja — que fez um estardalhaço ao colidir com o chão — e empurrasse Daren, aproveitando-se de um momento de descuido dele, enquanto virava-se para confabular com os demais.

Ela não sabia onde havia acertado, só sabia que, com a mão agora livre, tinha a empurrado para trás com toda sua força, colidindo com algo macio. Daren fez um som estrangulado, afrouxando o aperto, e então Deidra correu para a cozinha, sem se importar em passar por cima dos cacos das canecas quebradas. De lá, voou para seu quarto como se sua vida dependesse disso.

E talvez dependesse, afinal, tinha acabado de insultar — depois de dar um banho de cerveja — aquele que provavelmente era o homem mais perigoso dentre os aliados de seu pai.

O Sem Coração.

Sem CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora