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Ela dormira, percebeu quando abriu os olhos, assustada. Desde que começara a perambular pela mata, ainda muito nova, nunca tinha se permitido entrar no mundo dos sonhos quando encoberta pela copa daquelas árvores. Os antigos diziam que as fadas podiam roubar sonhos e prender os desavisados em teias de fantasia da qual jamais se livrariam. Ou então, ela estremeceu ao pensar, erguendo-se do chão úmido de orvalho, o povo encantado — muito antigo e que vivia na floresta desde o princípio dos tempos — podia fazer com que as árvores mudassem de lugar, embaralhando todas as trilhas e guardando, perdidos em seu cerne, homens e mulheres que só seriam encontrados anos depois. Se fossem.

Carregando a capa em um dos braços, Deidra abriu caminho por entre os arbustos, lutando para não se deixar levar pela imaginação. No entanto, aqui e ali achava que podia vislumbrar árvores pelas quais não passara antes e flores que não se lembrava de ter visto quando chegara ao poço.

Ela mordeu os lábios. A floresta não mudaria ao seu redor, Padrick dizia que corria sangue antigo em suas veias e por isso ela se sentia tão atraída pela mata fechada, pela correnteza selvagem e pelas ondas do mar... — estas últimas ela via muito pouco, mas ainda assim gostava delas — se havia sangue antigo em suas veias, então a floresta pertencia a ela, de forma que não poderia prendê-la.

O tempo podia se tornar uma armadilha dentro da mata e Deidra parecia estar caminhando para recantos ainda mais escuros. Até o musgo parecia mais espesso ali, teias de aranha formavam cortinas gigantescas entre um tronco e outro, como se Deidra tivesse mergulhado de uma floresta de encantos para uma de terrores em meros dois passos.

Os dedos frios do medo tocaram seu pescoço quando ela percebeu que estava perdida.

— Não, não, eu nunca me perdi antes — sussurrou, rodando nos calcanhares. — Eu sou descendente de Manannán e Níamh, a fada, nada pode me acontecer.

Ela deu um passo para o lado, escolhendo um caminho que parecia mais promissor, embora todos parecessem iguais. Se havia uma divindade que vivia na floresta, se havia sangue antigo correndo em suas veias, então ela deveria ser capaz de achar seu caminho por trilhas invisíveis. Devia ser capaz de...

Deidra parou, contendo o fôlego. Tinha chegado ao lago que sabia existir na floresta embora jamais tivesse ido até ele, tão afastado ficava dos limites em que ela costumava explorar. Mas não fora o lago que chamara sua atenção e sim a figura branca na margem.

O cavalo ergueu a cabeça, atraído pela presença dela, embora Deidra não tivesse emitido ruído algum. Não sabia que existia cavalos selvagens ali, tampouco tinha visto um cavalo como aquele em algum lugar... Era grande, maior que os cavalos dos soldados. Seu pelo branco era impecável como se alguém muito cuidadoso tivesse passado horas lavando e escovando e, claro, como se jamais o tivesse deixado sair do estábulo. Ele tinha olhos azuis e a encarou atentamente, com as orelhas e toda atenção voltada para ela. Um ligeiro franzir curioso no focinho cor de rosa indicando que a farejava.

Deidra fez um som baixinho, estalando a língua, que ecoou na floresta silenciosa. O cavalo respondeu o chamado com um relincho e cautelosamente deu um passo a frente. Logo, ele já estava próximo o suficiente para esticar o pescoço, cheirando a mão que ela muito delicadamente lhe estendera.

Encantada pela visão, pela crina macia ao vento e pelos olhos azuis que pareciam ver sua alma, Deidra sentia o sorriso abrir em seu rosto. De todas as maravilhas que guardava secretamente em seu coração, a presença daquele ser na floresta, que certamente não podia pertencer a este mundo, não quando emanava tanto encanto, seria seu maior segredo. Ela julgava que os unicórnios eram espertos demais para serem pegos por homens, que sequer podiam atraí-los — este era um privilégio das donzelas como ela — e as criaturas encantadas sabiam se esconder nas fendas entre os mundos, passando por portais que só as fadas conheciam, mas um cavalo? Encantado ou não, qualquer um podia laçar um cavalo.

Ainda mais quando logo ali, no castelo tão perto, alguém como o príncipe Daren espreitava...

Daren.

O coração de Deidra pulou uma batida, quebrando todo o momento de encanto. O torneio, o rei... ela precisava voltar! Há quantas horas estava sumida? Deidra olhou para o céu, vendo os primeiros tons escuros surgirem. Se a lua aparecesse, Padrick a entregaria ao pai e ela estaria além de qualquer salvação.

O cavalo pareceu sentir seu nervosismo, pois se afastou com as orelhas abaixadas e certo ar desconfiado na expressão corporal.

— Eu preciso ir — Deidra falou para ele, sem saber bem ao certo o porquê. Ele ergueu as orelhas, atento, como se a entendesse. Ela olhou ao redor, mas independente do encanto do cenário e de seu novo companheiro, continuava perdida. — Você não saberia como volto para o castelo, certo?

Ela julgou que não havia mal em perguntar, embora não esperasse uma resposta. O cavalo branco entortou a cabeça, as orelhas movendo-se de um lado para o outro, parecendo confabular. Sob o olhar perplexo de Deidra, ele inclinou o focinho para um caminho entre as árvores — um caminho que certamente não estivera ali antes — e bufou baixinho.

— Só pode ser um sonho — Deidra riu, sem conseguir deixar de piscar enquanto o cavalo continuava indicando-lhe a passagem entre as árvores. Ele foi até lá, parou e esperou, com as orelhas em movimento, alerta, que a princesa o seguisse. Quando ela continuou parada, ele relinchou mais forte e, Deidra se encolheu. — Está bem, se você insiste...

Ela tinha encontrado um cavalo que abria caminhos... e perambulava pelos mundos.

Ela tinha encontrado Embarr, o cavalo das lendas.

Sem CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora