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A ama parecia que tinha ido embora há muito tempo e sem intenção de voltar, pensou Deidra, andando de um lado para outro do quarto. Talvez a mulher não tivesse encontrado desculpa alguma para amenizar a possível situação desastrosa em que ambas se meteram e decidira juntar suas coisas numa trouxa e fugir.

Deidra bufou, um som nada principesco, antes de desabar em seu banco na janela. O que é que iria fazer agora? Se o maldito príncipe Sem Coração a descobrisse e contasse para o rei que tinha esbarrado com ela vestida de criada... Deidra não era nem capaz de imaginar o castigo que receberia. Se ele decidisse abrir a boca sobre a forma como tinha colocado as mãos em cima dela, e Daren parecia ter todo o potencial para fazer isso, talvez seu pai tivesse um ataque do coração — ao contrário de Daren, ele tinha um — antes de sequer pensar em um castigo adequado.

Mas não adiantava nada ficar ali remoendo teorias. Era preciso agir e com um plano mais criativo do que ficar escondida no quarto até o torneio terminar. Ninguém iria permitir uma coisa dessas.

Ainda assim, precisava ganhar tempo. Pelo menos mais um dia para que Daren se embebedasse mais vezes e esquece o rosto da criada em uma névoa de outras experiências regadas a hidromel e cerveja. Deuses, ela pagaria para que outra criada derrubasse cerveja nele se isso ajudasse!

Trombetas soaram no pátio e Deidra esticou o pescoço para ver o que acontecia lá fora, segura de que não seria vista no alto da torre.

Os homens galopavam do pátio para o exterior gramado do castelo, segurando seus estandartes até parar de frente para o trono do rei, posicionado em uma sombra, coberto com uma lona clara e rodeado por outros pavilhões e barracas, como se um exército estivesse montando acampamento para sitiar a fortaleza.

Era a cerimônia de recepção e Deidra deveria estar lá embaixo. Seu estômago se contorceu sabendo que mais cedo ou mais tarde alguém viria buscá-la, pois era de praxe apresentar a princesa aos possíveis pretendentes se houvesse príncipes e nobres entre os cavaleiros — e havia!

Ela reconheceu, à distância, o estandarte vermelho do Sem Coração, ou melhor, de Dalriada, com seu coração negro retorcido no meio. A criada que a tinha ajudado a se vestir contou, depois de muita especulação de Deidra, o que diziam a respeito do príncipe e não havia uma coisa boa que fosse!

Diziam que ele caçava tanto nos arredores de sua fortaleza, que os animais eram poucos e fugiam só de ouvir o ranger dos portões do castelo. Ele era cruel, frio e temido, independente de ser um exímio guerreiro. Ninguém ousava desafiá-lo ou desobedecê-lo.

Mas ela não queria mais pensar nele, então desviou o olhar para os outros estandartes. O verde de Oiléan Caisléan, os de Dyfed e Gwynedd, reinos de Gales, para a flâmula de fundo azul com um urso — o símbolo do filho de Pendragon, que assumira o trono há pouco, pelo que ela ouvira falar — e, entre tantos outros, pousou os olhos na flâmula de seu próprio pai, um cavalo branco sob um fundo azul marinho.

As antigas histórias diziam que a linhagem de sua mãe descendia de Manannán Mac Llyr, o deus dos mares e do Outro Mundo, e trouxe com ela o símbolo, que seu pai adotou, pois dizia que uma vez, quando voltava da guerra, fora salvo por um cavalo branco que saíra diretamente do mar... e Manannán possuía — segundo as histórias que Padrick, o druida, não cansava jamais de contar — um cavalo, que criara a partir das ondas do mar e que era imortal. Uma criatura capaz de atravessar os véus que separam os mundos das criaturas encantadas e dos homens.

Lembrar-se da história deu uma ideia a Deidra. Logo atrás dela, na parede ao lado da cama, havia uma tapeçaria grandiosa que ocultava uma pequena porta, por onde o vento costumava entrar e enregelar quem o estivesse ocupando. A porta permanecia fechada e quase nunca era usada, mas Deidra sabia onde estava a chave, não havia nenhum motivo para não usá-la... ela, inclusive, fora construída por seus ancestrais com o intuito de uma fuga rápida, caso o castelo um dia fosse atacado.

Se ela usasse a porta, teria uma passagem rápida, livre e direta para os fundos do castelo, na clareira da floresta. Deidra sempre gostara da mata, nunca teve medo de perambular como uma criatura selvagem por entre aquelas árvores e não via razão alguma para não fazê-lo agora. Se ninguém a achasse, não poderiam colocá-la cara a cara com Daren de novo, não é?

As pessoas iriam entender sua estratégia, fingir-se de doente e fugir não era algo que Deidra nunca fizera, embora jamais o tivesse feito durante uma festa. Ainda assim os pais descobririam. Mas se ficasse escondida na floresta por um tempo... Talvez seus pais culpassem a idade pela rebeldia e o máximo que poderiam fazer era conjecturar que ela precisava de um marido de pulso firme. Eles até mesmo poderiam acabar apressando seu casamento, o que pela princesa não era um problema.

A chave ficava na caixa de costura, entre linhas, agulhas e alfinetes. Deidra a pegou, vestiu uma capa pesada por cima do vestido, enfiou uma vela no bolso e por fim afastou a pesada tapeçaria azul com o cavalo branco empinado. A escadaria escura e estreita que a levaria para a floresta a saudou com sua corrente de ar frio e seus ecos assustadores. Aquele corredor cortava todo o interior do castelo, de modo que suas paredes carregavam os sons das conversas de quase todos os cômodos. Risadas chegaram até ela, assim como vozes graves e o que parecia ser o chiado de espadas se chocando.

Então o torneio já tinha oficialmente começado.

Ela se apressou.

Sem CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora