29

1.1K 160 15
                                    


Havia homens armados do lado de fora, mas Deidra estava plenamente consciente de que havia só um ali dentro com ela, dividindo o espaço pequeno e quente. Aquele homem parecia ser mais importante e mais ameaçador que todos os outros.

Mantas grossas e quentes tinham sido estendidas no chão da tenda, convidando ao melhor sono possível em meio a uma expedição. Daren jogou sua capa de um lado para se acomodar melhor. Ela engoliu em seco, observando-o, pronta para dar meia volta e sumir dali, mas ele parecia estar bastante consciente de cada respiração dela. Quando Deidra pensou em dar-lhe as costas, a mão dele já a segurava pelo pulso.

— Deite-se comigo — ele convidou.

— Disse que não aconteceria nada... — ela protestou.

— Não estou vendo nada acontecer — ele rebateu arqueando uma sobrancelha.

Deidra respirou fundo, tirou sua própria capa e acomodou-se nas cobertas perto do príncipe. A tenda agora estava quente demais, mesmo com o vento frio lá fora. Ela sentia que terminaria a noite com torcicolo, tamanha sua tensão, sem ousar mover sequer os polegares, que cruzara sobre o abdômen, não muito diferente da posição de um corpo sendo velado.

Daren deitou ao seu lado, aparentemente sem nenhum problema em dividir o pequeno espaço. Ele acomodou o rosto perto do pescoço da princesa, de modo que sua respiração lhe fazia cócegas e passou um braço por sobre a barriga dela, como que para impedir que se movesse quando dormisse.

— Por que não fica de frente para mim? — Daren sussurrou e as palavras fizeram cócegas em sua pele. — Garanto que não mordo.

"Que diabos estou fazendo aqui?!"

Fechando os olhos, Deidra se virou. Ela sentiu o riso de aprovação na voz dele quando murmurou algo inteligível, logo em seguida acariciando toda a extensão de suas costas. Deidra prendeu a respiração, gostando do toque, embora não devesse...

Os sons da noite e o tranquilo deslizar da mão dele a embalaram até os limites do sono e quando finalmente percebeu que Daren dormia, pois o peso de seu braço estava imóvel sobre sua cintura, Deidra finalmente adormeceu também.

***

Quando o céu tinha clareado, embora não o suficiente a ponto de anunciar a manhã, Deidra despertou assustada. Descobriu-se abraçada ao Sem Coração como não deveria estar. O braço dele a aproximara mais de seu corpo, mas a mão dela tivera vontades próprias e também o abraçara de volta, de modo que agora o apertava possessivamente; os dedos debaixo da camisa dele, tocando a pele macia e quente.

E, é claro, uma perna dele prendia as dela no lugar. "O que diabos estou fazendo?" repreendeu-se, "sou mesmo uma princesa desmiolada!".

Deidra se amaldiçoou mentalmente, mas não teve coragem de se desvencilhar. Ele ficava tão bonito dormindo, a face tão angelical, tão jovem... Tão inofensivo.

Delineando linhas imaginárias nas costas dele, Deidra observou os traços delicados que compunham o outrora feroz príncipe. Os lábios finos, o nariz afilado, os longos cílios claros, quase brancos — e maiores do que os dela, constatou com uma careta — e os longos cabelos caindo ao redor dos ombros. Ela tocou uma mecha loira e a empurrou de lado, então ousadamente inclinou-se para lhe roubar um beijo, antes que pudesse pensar demais e mudar de ideia.

Ao menos ele tinha mantido a promessa. Calor do corpo e uma noite de sono... Nada mais.

Ela voltou a dormir, desta vez só despertando quando os homens começavam a fazer barulho, aprontando-se para a partida. Não havia sinal de Daren.

Deidra levantou apressada, temendo ser alvo de comentários e piadas, mas ao sair da tenda, ninguém ousou olhar para o seu lado, com exceção de Padrick e do mestre de armas que parecia ser o encarregado de preparar o desjejum; um tipo de mingau.

Padrick desviou os olhos da direção dela, praticamente coaxando um bom dia, bastante culpado, se é que ela interpretava bem as feições do homem.

— Não aconteceu nada, Padrick — comentou ao sentar-se junto dele, aceitando o mingau que o druida lhe ofereceu.

— Acredito — ele pigarreou. — Mas deve tomar cuidado, princesa, aquele homem não é tão domesticável quanto você pensa.

Ela enrubesceu, aborrecida pelo druida saber ler suas intenções tão bem.

— Não penso nada, Padrick — ela cortou o assunto, dando uma colherada no mingau e evitando fazer uma careta para não ofender o cozinheiro. Por sobre os ombros, observou a confusão ao redor do acampamento, tentando captar um vislumbre do garoto.

Não o viu em parte alguma, então chamou o mestre de armas, que mais uma vez dava atenção aos cães de Daren.

— Onde está o garoto de ontem? — ela perguntou.

O homem encolheu os ombros, contrariado.

— Escute, princesa, deixe o garoto em paz. Seu afeto e atenção só farão despertar o ciúme do príncipe. A primeira coisa que fez hoje, assim que acordou, foi marchar até a tenda onde o garoto dormia e arrastá-lo para fora, mandando que fosse para Dalriada o quanto antes. O príncipe foi bastante claro: ele disse que se o garoto não estivesse no castelo quando chegássemos lá, levaria uma surra. Sabe quanto tempo leva para se alcançar Dalriada montando um pônei velho de carga? — O homem não esperou que ela respondesse. — Sua caridade de ontem, princesa, vai fazer com que seu precioso garoto não durma ou pare para descansar em nenhum momento enquanto não estiver com os pés em Dalriada.

Ela estava chocada, mas o senhor de armas de Daren não tinha piedade alguma, ele cuspiu nas cinzas da fogueira e balançou a cabeça.

— É bom que conheça o homem com quem pensa em se casar. Este é o Sem Coração e é melhor que a princesa não tente mudar as regras dele. Agora, faça um favor ao garoto e esqueça-o, ele vai ficar melhor sem sua interferência.

Deidra sentiu-se arrasada e pelo resto do dia evitou se aproximar do príncipe, com medo de dizer algo que pudesse se arrepender depois ou mesmo deixasse seu pai em uma situação complicada com Dalriada.

Na manhã seguinte, eles chegaram ao reino do Sem Coração.

Sem CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora