Guiada por Embarr, ela voltou para o poço, onde retornou à trilha que levava ao castelo; depois de um tempo de caminhada, Deidra pôde ver as flâmulas e o brasão do pai nas torres.
— Gostaria de ter algo para agradecer devidamente — ela sussurrou, acariciando a crina longa de Embarr, que lambeu seus dedos. — Obrigada. Agora é melhor você ir. Volte para onde ninguém poderá encontrá-lo. — O som de risadas os alcançou, chamando a atenção tanto de Deidra quanto do cavalo, o que a preocupou. Estavam muito, muito perto do Sem Coração. — Há homens maus aqui... Homens muito maus.
Ela mal tinha terminado a frase quando ouviu alguém se aproximando ruidosamente, cantarolando embriagado. Embarr deu meia volta em uma velocidade vertiginosa, fazendo Deidra recuar, receosa de levar um coice ou ser pisoteada por ele.
— Que os deuses o protejam — ela murmurou.
Então o homem surgiu na trilha, tão embriagado que mal se mantinha em pé. Ele cantarolava, aparentemente em busca de um lugar para se aliviar. Se estivesse um pouquinho mais sóbrio — ou menos bêbado — teria avistado Deidra, no entanto ele estava preocupado demais em manter o próprio equilíbrio enquanto olhava as estrelas — e às vezes o chão — e cantava.
As estrelas!
Deidra seguiu o olhar do homem para cima e avistou vários pontos brilhantes no céu azul escuro. A lua já nascia.
Ela correu pelo mato, passando pelo homem tão rápido que ele sequer teve tempo de registrar sua presença antes de cair sentado em uma moita.
Nunca em sua vida Deidra tinha percorrido tão rápido o trecho que separava a floresta do castelo, e quando pisou no pátio, os homens estavam reunidos ao redor de uma fogueira, bebendo e cantando. Padrick tinha uma harpa no colo e era o menestrel da noite. Ele foi o único a vê-la se aproximando, o sorriso aprovador foi um indicador de que ela tinha chegado a tempo.
A cantoria cessou quando Deidra ficou completamente visível à luz alaranjada do fogo.
— Deidra! — o pai a chamou, surpreso por vê-la. — Padrick disse que você não se sentia muito bem.
Ela trocou um rápido olhar com o druida, antes de responder.
— Sim, meu pai, senti-me agitada e estranha durante toda a manhã. Padrick instruiu-me a meditar um pouco, mas devo ter perdido a noção do tempo. Queiram me perdoar todos os cavalheiros — ela fez uma reverência aos homens.
— Estávamos ansiosos por vê-la, princesa! — alguém gritou.
— É muito interessante que suas meditações envolvam folhas nos cabelos e terra no vestido — a pessoa que falou estava ao lado do rei, mas as sombras o mantinham oculto. No entanto, era impossível não reconhecer aquela voz. Arrepios subiram pela coluna de Deidra enquanto Daren se colocava em pé e lançava ao fogo o restante de sua bebida.
Ele parou a poucos centímetros dela, sóbrio o suficiente para analisá-la como se fosse um cervo carnudo que ele pretendesse abater para o jantar. E em seus olhos azuis, Deidra podia jurar ver o reconhecimento. Os olhos frios e calculistas permaneceram nela pelo que pareceu uma eternidade, um contraste e tanto quando comparado com o azul pálido e amistoso do cavalo branco.
Deidra afastou a imagem de Embarr antes que, de alguma forma, o Sem Coração conseguisse ler seus pensamentos e saísse caçando o cavalo branco do Outro Mundo.
Com um riso malicioso para algo que só os pensamentos mais obscuros de Daren podiam conhecer, ele passou por ela, ombro com ombro. Seu calor tocando o frio do orvalho que molhara o vestido, o cheiro dele a perseguindo de forma... assustadora. Seria ele um caçador o tempo todo?
Um belo e perigoso caçador.
— Vou procurar Caddor antes que ele seja devorado por alguma coisa na floresta — Daren avisou a ninguém em particular.
Deidra não saberia afirmar, mas havia algo no olhar dele que dizia que a reconhecera, mas não teve tempo de pensar muito e sequer queria, pois Padrick, incentivado pelos outros homens, convidara-a a sentar-se ao redor da fogueira para cantar. Deidra olhou para o pai a procura de algo. Talvez de uma reprovação, talvez de indignação diante do comportamento do príncipe, mas para sua consternação o rei trazia no rosto apenas uma expressão de curiosidade velada.
Frustrada, Deidra juntou-se aos demais.
Ela cantou sobre ninfas e salgueiros, talvez embalada pela presença mágica que testemunhara na floresta e quando terminou, Daren estava de volta, amparando um de seus cavaleiros adormecido que largou em um canto, desajeitadamente, antes de voltar para perto dos demais e arranjar outra caneca de bebida.
— Então, o que perdi? — ele resmungou, esticando as pernas e cruzando-as na altura dos tornozelos, na direção do fogo.
— A princesa estava cantando — Padrick respondeu, em um tom de censura que Daren não pareceu captar.
— Ah, era isso? — ele arqueou as sobrancelhas. — Achei que fosse uma sereia ou uma ninfa morando em algum salgueiro.
Quando ele piscou malicioso para Deidra, dando a entender que ouvira a música toda, os homens fizeram graça. Um deles gritou mais alto:
— E você pensou em desposá-la? — Todos os olhares foram para o homem, inclusive o de Deidra. — Digo, desposar a ninfa do salgueiro? — Porque na canção de Deidra o cavaleiro ficava tentado a casar-se com a ninfa que vivia na velha árvore.
— Eu? Talvez — Daren deu de ombros. — Mas penso que sou selvagem demais para ser domado.
Eles brindaram a isso e Deidra não sabia explicar o calor que a tomou por completo ao imaginar-se casada com Daren. Preferiu justificar aquela reação boba ao fato de estar sentada muito perto do fogo. Então, antes que seus pensamentos tomassem um rumo mais estranho, pigarreou, chamando a atenção de Padrick.
— Por que não nos conta a lenda de Manannán e Níamh? — a guisa de explicação aos demais, Deidra acrescentou. — Dizem que os ancestrais de minha mãe provêm da linhagem deles.
Quando todos, incluindo o rei, concordaram que aquela era uma história que merecia ser contada, Padrick assentiu, dando um acorde na harpa, indicando que iria começar a narrar.
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Sem Coração
RomansaA jovem princesa Deidra precisa se casar, mas seu caminho vai se cruzar com o impiedoso e cruel príncipe Daren, que todos chamam de Sem Coração. Enquanto Deidra tentar esconder dele os segredos que guarda no interior da floresta, o príncipe estará d...